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Grupo se mobiliza em Petrópolis para criar centro de memória na Casa da Morte

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Na sexta-feira, dia 27, quando se completam três anos da morte de Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte, centro de tortura mantido no início dos anos 70 pelo DOI-Codi e pelo 1º Exército em Petrópolis, na Região Serrana, será realizada uma plenária em sua homenagem a partir das 18h, no coreto da Praça da Liberdade, no Centro da cidade. O encontro vai contar a história e projetar vídeos sobre a militante política, para mobilizar a população pela criação de um centro de memória no local onde morreram ao menos 22 presos políticos. 

O evento é organizado pelo Coletivo Inês Etienne, recém criado pela atriz petropolitana Iara Roccha, de 49 anos,  diretora do Grupo Língua de Trapo e filiada ao PCdoB; e pela jornalista carioca Márcia de Almeida, 65, ativista na luta contra a ditadura, que trouxe à tona o sofrimento de Inês ao entrevistá-la no presídio, em Bangu, em 1978, com outros três jornalistas, para uma reportagem no Pasquim. “A campanha pela criação da Casa da Morte vai para a rua, vendi meu apartamento no Rio há dois meses e vim para cá para me dedicar a esta causa”, explica Márcia. 

Quando a reportagem do JB foi ao endereço onde funcionou a Casa da Morte, uma ladeira na Rua Artur Barbosa 120, no bairro Caxambu, o portão de ferro marrom da casa – agora com uma chapa de proteção que não existia no passado – estava fechado e deu para ver alguém retirando da garagem um Fiat prata para estacioná-lo no jardim. Porém, ninguém atendeu à campainha tocada insistentemente por 15 minutos. Caiada de branco com janelas de madeira aparente, azaléas brancas no canteiro, ali foi a residência do alemão Mario Lodders, simpatizante da ditadura militar, que emprestou o imóvel à repressão. O local da tortura ficava em uma casa menor no terreno de 26.572 m², de número 50, para a qual foi aberto um processo de desapropriação em 2012, pelo decreto 966, expirado em 2017 por falta de recursos. 

Já o processo de tombamento da Casa da Morte começou no fim de 2017 e, segundo o secretário municipal de Planejamento e coordenador do Conselho Municipal de Tombamento, Roberto Riso, “deverá ter o encaminhamento definitivo até o fim do ano”. O pedido de tombamento foi feito pela Comissão Municipal da Verdade: “Até o momento foram apresentadas provas documentais sobre a chamada Casa da Morte, centro secreto de tortura e aniquilamento de presos políticos. A primeira reunião para o exame das provas pelos conselheiros, baseadas no testemunho de Inês Etienne Romeu, está agendada para o dia 25 de abril”, antecipa o coordenador do grupo, Eduardo Stotz. 

Originalmente, as numerações da Artur Barbosa – na época um local ermo, sem vizinhança, e hoje uma rua habitada por residências de classe média alta – eram 668 e 668-A, que passaram, respectivamente, ao número 120, onde residia o alemão, e 50, o local da tortura e alvo de tombamento. A casa maior está em nome da empresa Vista Alegre Mediadora S.A, e a de número 50 foi adquirida em 1981 por Renato Firmento de Noronha e Lilian Pita Noronha, por 2,1 milhões de cruzeiros (correspondentes a R$ 248.103 mil), que fizeram a doação do imóvel, de 179m², aos filhos Clarisse Pita de Noronha e Luiz Eduardo Pita de Noronha, em 2004, por R$ 250 mil. Consta que todos continuam a habitar no imóvel. Na última reunião dos conselhos municipais de Tombamento e da Verdade, no dia 21, foi dado o prazo de um mês para que o proprietário se posicione em relação ao imóvel. Pela (falta) de reação à presença da reportagem, os interessados terão de esperar sentados por este retorno. 

O problema maior é que não parece haver nenhuma sintonia entre os grupos mobilizados pela causa. Márcia de Almeida bate o pé pela manutenção do nome como Casa da Morte. A Prefeitura de Petrópolis, porém, não quer associar o nome da Cidade Imperial a um centro de torturas, e propõe simplesmente Memorial. A Comissão Municipal da Verdade defende o batismo da casa com o nome de quem comprovou a prática do terrorismo de Estado naquelas dependências: Inês Etienne Romeu. Aparentemente, o maior problema desse impasse é a falta de apoio mútuo entre as três partes.

Quem foi Inês 

Inês Etienne Romeu integrou a luta armada contra a ditadura militar, pelas organizações Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares) e Revolucionária Marxista Política Operária (Polop) e foi a última presa política a ser libertada no Brasil. Seu calvário começou em 5 de maio de 1971, ao ser detida em São Paulo sob a acusação de participar do sequestro do embaixador suíço Giovanni Bucher. Capturada pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury, de São Paulo, ela seguiu para o Rio de Janeiro. Antes de ser levada à Casa da Morte, Inês tentou suicídio ao se jogar na frente de um ônibus. Sobreviveu, entretanto, com a perna necrosa

da, o que aumentou ainda mais seu sofrimento durante seus 96 dias de martírio (de 8 de maio a 11 de agosto de 1971). Nesse período, voltou a tentar suicídio três vezes, para escapar à tortura, humilhação e constante sodomia.  

Só conseguiu escapar ao fingir concordar com seus algozes de que iria trabalhar como infiltrada para o regime militar. Foi levada doente, pesando 32kg, à casa da irmã, em Belo Horizonte, e daí a um hospital, quando sua situação foi  oficializada e a condenaram à prisão perpétua. Inês só saiu do Presídio Talavera Bruce, em Bangu, em 1979, e passou a se dedicar a denunciar os crimes contra os Direitos Humanos cometidos pela ditadura. Seu depoimento à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) permitiu a localização da Casa da Morte e a identificação de colaboradores, como o médico Amílcar Lobo, que mantinha as vítimas da tortura vivas para permitir continuidade às sevícias. Aos 61 anos, em 2003, ela foi encontrada em seu apartamento com traumatismo crânio-encefálico, depois de receber um marceneiro para um serviço doméstico. O boletim policial registrou um “acidente doméstico”, enquanto a Santa Casa de Misericórdia informou que a causa do traumatismo foram “múltiplos e diversos golpes”. Após uma vida de tanta dor, Inês Etienne morreu dormindo, em 27 de abril de 2015.

Memória do centro de torturas

Na interpretação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a Casa da Morte foi uma mudança na estratégia repressiva da ditadura. De 1964 a 1970, as torturas e execuções de opositores políticos eram encobertas por falsas versões de suicídio, atropelamento ou tiroteio e o corpo da vítima era entregue aos familiares em caixões lacrados, com certidão de óbito atestando uma falsa versão para a morte. Quando as denúncias de tortura no Brasil repercutiram no exterior e alguns casos tiveram visibilidade – como a morte de Chael Charles Schreier, da Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares) –, a ditadura passou a investir na estruturação de centros clandestinos e na adoção da prática de desaparecimento forçado como política de Estado, para evitar o desgaste da imagem do governo perante o exterior. 

Segundo um de seus idealizadores, o coronel do Exército Paulo Malhães, o “Dr. Pablo”, do Movimento Anticomunista (MAC),  torturador confesso, esses centros tinham o objetivo de aterrorizar os presos, levando-os a delatar suas organizações e torná-los colaboradores, devolvendo-os às organizações para informarem sobre suas atividades.

Era dada, aos presos, a opção de colaborar com o regime para saírem vivos. Os que recusavam “seguiam destino”: eram mortos. Mas nem sempre ocorreu assim. A História mostra os exemplos de Inês Etienne Romeu e Vitor Luiz Papandreu, o Greguinho ou Russo – ex-soldado do Exército que em 1968 participou da invasão a um quartel em Curitiba (PR) para libertar o então coronel Jefferson Cardin de Alencar Osório. Tornou-se desertor, exilou-se no México e em Cuba. Também foi preso na Casa da Morte, onde acabou torturado e aceitou colaborar com seu torturador, o major Rubens Paim Sampaio, no entanto acabou executado. 

Em sua biografia, o médico Amílcar Lobo narra ter ouvido do major Paim Sampaio, logo após a execução de Papandreu: “Lobo, não é a primeira vez que mato alguém aqui em Petrópolis. Já foram mais de dez. Ninguém sai com vida daqui.” Não se sabe quantos presos passaram por lá nem o destino dado a seus corpos. 

O Centro teria sido desativado no fim de 1973, com a saída do general Sylvio Frota do comando do Iº Exército, no Rio.