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Nascidos no século 19, cortiços ainda enfrentam o mesmo descaso das autoridades

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O “Cortiço”, livro que se move entre o naturalismo e o realismo, trouxe ao imaginário carioca um tipo de habitação em que se alugam cômodos e no qual seus moradores fazem um uso coletivo de banheiros e cozinhas. O escritor Aluísio Azevedo descreveu essa forma de morar em 1890, num tempo em que o então poder público do Rio de Janeiro fez uma feroz companha pela destruição dessas edificações. Muitas, por causa disso, deixaram de existir. Pesquisadores da UFRJ mostram, contudo, que mais de um século depois, por trás de suas portinhas carcomidas pelo tempo, os cortiços ainda resistem ao cenário mutante da cidade e revelam seu universo paralelo e singular. Levantamento do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur/ UFRJ) contabiliza 54 deles na Região Portuária e em parte do Centro. Professor do Ippur, o sociólogo Orlando Santos explica a motivação da pesquisa: “Quando o Ministério da Cidade exigiu que, no projeto Porto Maravilha, fosse feito um diagnóstico sobre habitação popular da área, reparamos que nele os cortiços não eram sequer citados. Assim, resolvemos fazer um aprofundamento da questão”. 

A partir daí, houve uma surpresa atrás da outra. A primeira delas é que a prefeitura invisibiliza esse formato de moradia. “Não existe qualquer preocupação em catalogar os cortiços na cidade”, diz a pesquisadora do Ippur Bruna Ribeiro, que percorreu boa parte das unidades enumeradas na pesquisa. “A administração municipal poderia fazer políticas públicas, tornando os cortiços lugares com melhores condições de habitação para pessoas de baixa renda e que não abrem mão de morar no Centro. Isso contemplaria o que denominamos de direito à centralidade”. 

Sim, os moradores de cortiços entrevistados pelo JORNAL DO BRASIL amam morar no Centro. Derick Sant’Anna, de 28 anos, foi morar no Cortiço Chora Vinagre, na Rua dos Inválidos, na Lapa, quando era estudante de Comunicação. O Chora Vinagre tem 69 cômodos, 20 banheiros e 39 cozinhas. Tanto estas como aqueles são utilizados coletivamente. “Eu não podia pagar aluguel em outro lugar da cidade que é tão perto de tudo, conta com bom comércio no entorno e tem um ambiente familiar”, disse Derick .  

Ali, no Chora Vinagre, boas histórias recheiam o dia a dia. Com 86 anos, Edna Pinto conta que foi a primeira brasileira a morar no cortiço construído em 1926. “Cheguei aqui com meus pais nos anos 1950, quando só havia portugueses. A maioria das mulheres formava um grande grupo de lavadeiras. Os homens eram garrafeiros, floristas. Vários deles faziam arranjos de flores por aqui”, recorda. 

Outros faziam samba, como Genaro da Bahia. Cantor e compositor da Mangueira, ele  diz que há mais de 40 anos mora no cortiço. “Estou muito bem aqui, obrigado”, diz o sambista, dando uma sonora gargalhada. 

Bruna Ribeiro virou fã do compositor. Mas ressalva que, dos 54 cortiços pesquisados, em alguns salta aos olhos a falta de estrutura. “Há casos de famílias morando em um cômodo de menos de dez metros quadrados”, diz a pesquisadora do Ippur. Para o professor Orlando Santos, existem cortiços que deveriam fazer parte do cálculo do défict habitacional do Rio: “O poder público poderia fazer intervenções no sentido de qualificar a moradia em determinados cortiços”. 

Na Rua da Conceição, um cortiço materializa tal impressão. Quartos sem janela, pouca luz do sol e banheiro e cozinha carentes de uma obra dão forma a um quadro desolador.  Na Rua do Resende, outra unidade expõe quartos diminutos. O alfaiate Rui Costa, entretanto, mora e trabalha num desses cubículos. Rui se preocupa com seu sustento. Seu ofício vem perdendo clientes com o tempo, mas, como um morador mais antigo dali, tem o respeito de seus vizinhos de porta. Um deles é o artesão Ivan Santos, que também utiliza o lugar de morada para fazer colares e pulseiras: “Eu faço meu trabalho aqui e, no Centro, encontro cliente”. 

Os grupos heterogêneos chamaram a atenção dos pesquisadores do Ippur. Um cortiço na Senador Pompeu, no Centro, que se destaca pela arquitetura e por ser relativamente estruturado, atrai homens solteiros com renda mais certa e idosos aposentados. Mas outros, mais modestos, motivam imigrantes angolanos, cozinheiros, garçons, camelôs e estudantes, desvelando, como flagrado na pesquisa, rica diversidade.

A pesquisa sobre cortiços está sendo ampliada. A segunda fase está paticamente encerrada. Nela, vêm sendo encontradas habitações  no entorno da Cinelândia, do Saara e da Rua da Carioca. A terceira etapa vai à procura de cortiços na Cidade Nova, lugar importante no surgimento do samba. 

Esses dados serão, obviamente, inéditos, levando-se em conta que a prefeitura nunca se preocupou, em qualquer gestão, em fazer um estudo sobre esse tipo de moradia, em que quartos são alugados em estruturas com banheiros e cozinhas coletivas. 

A administração municipal só se sensibiliza em relação a cortiços tombados, como os dos números 9, 13 e 65 da Rua Senador Pompeu. Bem bonitos, contam a história de um tipo de moradia que se notabilizou no fim do século XIX e início do século XX. 

A pesquisa do Ippur diz que uma síntese da situação dos cortiços cabe numa frase sem verbo: invisibilidade urbana e social. “Mas entre eles há uma interessante rede de sociabilidade”, diz Santos, sugerindo que a pesquisa ainda dará muito pano pra manga. 

O Cabeça de Porco 

“Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas”. A descrição do escritor Aluísio Azevedo do lugar retratado em seu célebre livro poderia servir para o Cabeça de Porco, cortiço localizado próximo à atual Central do Brasil, o maior do Rio no século 19. À semelhança das favelas, a habitação coletiva era alvo de preconceitos e generalizações. Na “Revista Ilustrada”, o tom do texto era de comemoração e homenagem ao então prefeito Barata Ribeiro, que tinha horror a cortiço e sancionara um decreto, o de número 32, pelo qual ele se deu o poder de destruir esse gênero de moradia: "Quem suporia que uma barata fosse capaz de devorar uma cabeça de porco". 

Lilian Vaz, renomada arquiteta e urbanista, pesquisou a dilaceração do Cabeça de Porco. Segundo ela, seus mais de dois mil moradores da Rua Barão de São Félix foram os primeiros a ocupar o primeiro morro a ser chamado de favela no Brasil: o da Providência, que se localizava num dos acessos do emblemático cortiço. Se Barata Ribeiro perseguiu os cortiços com faca nos dentes, merecendo alusão na charge da revista (veja a ilustração acima), o incensado prefeito Pereira Passos recrudesceu o ataque às construções.Para o pesquisador e professor do Ippur, Adauto Cardoso, tal política resultou não só no surgimento da favela, como em sua disseminação pela cidade. "na falta de outras opções, a população de baixa renda subiu os morros, ocupou as áreas de mangues e alagados, as áreas públicas ou outros terrenos pouco valorizados pelo mercado", escreveu Cardoso em artigo sobre urbanização de favelas.  

Professor do Departamento de Serviço Social, Rafael Gonçalvez concorda que a forma como se erradicaram os cortiços resultou nas primeiras favelas "Os proprietários de cortiços continuaram suas atividades em áreas nos morros, alugando o solo ou casebres. De fato, as primeiras favelas se assemelhavam aos cortiços da época". No Rio, os cortiços eram construídos em áreas planas. No fim do século XIX e na primeira década do XX, as casas de madeira nas encostas não ficavam à vista nem incomodavam a burguesia da época.