ASSINE
search button

Nos 110 anos de morte de Machado de Assis, tombamento de casa onde morou ainda é provisório

Compartilhar

O casal Joaquim Maria e Carolina Augusta Machado de Assis devia passear por ali de mãos dadas, aos 35 e 39 anos, respectivamente, como apaixonados que foram, nos tempos em que a Rua da Lapa, no Centro, já era um recanto apreciado pela boemia carioca. Entretanto, o único imóvel habitado por Machado de Assis, embora por um curto período de tempo de 11 meses, de 1874 a 1875, o sobrado número 242 da Rua da Lapa, recebeu apenas um tombamento provisório, em 2008, apesar de a prefeitura já ter levado dez anos procurando mapear, em vão, outros bairros da Zona Sul por onde Machado pudesse ter deixado outros rastros. Uma discreta placa comemorativa indica o marco histórico, ignorada pela maioria dos turistas que caminham por ali após conhecer a Escadaria Selarón, decorada pelo pintor e ceramista chileno Jorge Selarón, radicado no Rio por longa data, morto em 2013. 

Foi neste endereço que o autor escreveu seu segundo romance, “A mão e a Luva”, publicado em 1874. É uma história de amor entre a protagonista, Guiomar, jovem de personalidade forte, sobrinha de uma baronesa, e seus três pretendentes. “Criaturinha falante e delicada, assaz, inteligente e viva, um pouco travessa, que deseja ascender socialmente”, descreveu o autor. Trata-se de um texto contido, minimalista, de análise psicológica, com a elegância estilística que caracteriza o escritor. A história se passa em Botafogo, na época bairro considerado subúrbio da cidade, repleto de chácaras aprazíveis, e foi muito bem recebido pela crítica da época.  

Visitação a Shakespeare 

 Já a casa onde o casal viveu, por 24 anos, no Cosme Velho, na Zona Sul, veio abaixo em 1910, dois anos após a morte de Machado e não deixou vestígios, a não ser em referência ao apelido de “bruxo do Cosme Velho”, uma das alcunhas do autor de “Dom Casmurro”.  Primeiro, foi erguido ali um palacete e, depois, um prédio,  que recebeu o nome de Flamboyant. No ano em que se comemoram os 110 anos da morte de Machado, em setembro,  a memória daquele que foi o maior escritor brasileiro do século XIX corre o risco de permanecer envolta nas brumas do esquecimento. A não ser pelo tombamento de sua obra como bem imaterial, também ocorrido em 2008. Só para termos de comparação, Stratford-upon-Avon,  cidade onde nasceu William Shakspeare, na Inglaterra, recebe mais de 800 mil visitantes por ano. 

Atuais vizinhos 

O esquecimento é atestado pelos atuais vizinhos do sobrado branco de estilo eclético, do ano de 1909 — embora o casal tenha passado por lá antes da data assinalada na fachada —, com esquadrias verde claras, portas e janelas cinza e algumas pichações que endossam o ar de abandono do imóvel. Antonio Souza, 91 anos, dono do misto de brechó com antiquário em frente ao sobrado, conviveu com personagens como Madame Satã e Nelson Gonçalves, e sabia que Machado havia passado por ali, mas na época nunca tinha ouvido falar nele.  “Fui boxeador e desde os 8 anos comecei a trabalhar com comércio. Fabriquei lustres e Getulio Vargas era meu cliente no Palácio Laranjeiras. Eu morava na Luís de Camões, mas vivia por aqui, por causa das gafieiras”, lembra Souza, que recorda os tempos em que os bondes circulavam por ali e diz manter no brechó exemplares do grande escritor, os quais não conseguiu encontrar. 

É difícil algum passante prestar atenção à placa circular entre os dois sobrados gêmeos — o de Machado está mais mal tratado, o vizinho, de fachada idêntica, é caiado de beje e tem a porta trancada por fora a cadeado. 

Como a placa fica bem no meio das duas casas, quase ninguém se detém para ler: “Patrimônio Cultural Carioca, Casa de Machado de Assis, bem tombado municipal, Circuito de Literatura, neste local, de 1874 a 1875, morou Joaquim Maria Machado de Assis, um dos escritores mais importantes da literatura nacional”. Embora pareça pinçada de um romance de Machado, a Hospedaria Sul Americana, que oferece “quartos para cavalheiros”, também em frente ao sobrado, emprega há pouco tempo o funcionário Reginaldo Silva, 45 anos, que nunca ouviu falar em Machado de Assis: “Não sei nada sobre ele”, desconversa.

Teatro de animação 

A sorte é que, desde 2011, o sobrado está ocupado pelo inovador grupo de teatro de animação Pequod. Se o lado externo parece o mais puro abandono, o mesmo não se pode dizer do interior, que foi todo reformado, já que o tombamento se restringe à fachada. O pé direito alto está muito bem aproveitado pela instalação de um mezanino sobre o salão de ensaio. É lá que fica a oficina de confecção dos bonecos usados pelo grupo nos espetáculos. “Antes de chegar aqui, montamos a peça ‘Contando Machado de Assis’, a partir de três contos do autor, com direção de Antônio Gilberto”, lembra a produtora Lilian Maria Bertin, que acompanha o grupo desde o início, há 20 anos.

Projeto Capitu 

Lilian começou a ler Machado ainda criança, naquela época, porém, achava o autor um tanto o quanto enfadonho. “Criança não entende. A pegada dele é mais para adolescentes e adultos. Já li ‘Dom Casmurro’ três vezes”, vibra ela, que continua a correr atrás de patrocínio para montar o Projeto Capitu e apresentá-lo na única casa ainda de pé onde viveu Machado de Assis. O casal de ex-moradores certamente iria apreciar este tipo de locatários.