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'Crime foi reação a avanços', diz Talíria Petrone em entrevista

Vereadora mais votada de Niterói fala sobre os ataques à imagem de Marielle Franco

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Vereadora mais votada nas eleições de 2016 em Niterói, Talíria Petrone era companheira de partido e amiga de Marielle Franco. Única mulher na Câmara Municipal da cidade, negra, feminista, cotada para ser vice de Tarcísio Motta na chapa do PSOL para concorrer ao governo do Rio, ela carrega a mesma bandeira da amiga em prol dos direitos humanos. “Não dá para ficar na defensiva, precisamos fazer um trabalho para desconstruir a ideia equivocada que muitas pessoas têm sobre o tema”, afirma a vereadora, que luta pelo fim do assistencialismo nas favelas, promovido pelos “coronéis da política”. 

Como avalia os ataques a Marielle Franco após o assassinato dela? 

A internet, que deveria ampliar o acesso à informação, tem se mostrado um forte instrumento para a extrema-direita fazer maioria e consolidar suas ideias, trabalhando com uma memória machista, racista e de intolerância com relação a todos os temas e pessoas que se envolvem com o assunto igualdade social. O que aconteceu com Marielle mostra como as redes sociais são usadas para isso. Pegaram pesado para dissociar a figura dela do que é e sempre vai ser, das lutas que ela defendia. Tentaram se apropriar de uma comoção mundial, e isso é muito grave. Querem fazer com que Marielle vire mais uma nas estatísticas. Estatísticas que ela própria denunciava.

Você falou sobre as bandeiras da Marielle. Até que ponto os ataques podem afetar o que ela vinha desenvolvendo? 

Estão tentando desfazer tudo o que ela sempre foi, a mulher socialista, feminista, negra, favelada, lésbica e que enfrentava esse modelo de segurança pública que existe contra nós e que foi potencializado pela intervenção no Rio. Tem que se apurar e descobrir não só quem apertou o gatilho, mas quem mandou matar a Marielle. O mentor desse crime temia o embate com ela, temia sobretudo perder privilégios. Esses ataques desumanos e orquestrados, sobretudo através da internet, tentam dissociar Marielle do que ela ainda é, do que representa para nós e para a continuidade das pautas dela. E dissociar Marielle do que ela é significa executá-la de novo e sempre.

Você acredita em crime político? 

Se há, atualmente, um crescimento da extrema-direita, isso se dá em reação a avanços de algumas lutas, como as causas LGBT, do posicionamento relevante das mulheres, dos negros. É em resposta a esses avanços no campo progressista que vemos, hoje, essas ações de barbárie. O mais grave desses ataques na internet é que representam uma extração do aumento do nível de violência política. É um atentado à liberdade do pensamento. Barbárie.

Essa violência chegou a você, e o autor de telefonemas com ameaças para seu gabinete foi indiciado... 

Sim, mas antes fosse só um indivíduo. Assim que assumimos o mandato, aqui em Niterói, vivenciamos picos de agressões nas redes sociais, de pessoas que se acham no direito de intimidar para calar quem pensa diferente delas. Sou a única mulher, negra e feminista, numa Câmara de maioria conservadora, com muitos nomes ligados à extrema-direita. Sofro ataques sistemáticos nas redes sociais, sou chamada de vagabunda, ameaçam de morte, dizem para eu “voltar pra senzala”. Perdeu-se completamente o medo de agredir a posição política do outro, o que representa claramente um elemento de barbárie, contra o mínimo de democracia a que conseguimos chegar.

Você já sofreu com as fake news? 

Uma vez, num evento falei sobre uma operação da polícia na favela do Salgueiro, em São Gonçalo, afirmando que tinha havido ali uma chacina. Critiquei aquela operação, mas também enumerei propostas sobre segurança pública, itens que beneficiariam, inclusive, os próprios agentes de segurança. E pedi um minuto de silêncio pelas vítimas daquela chacina. Pois bem, logo depois disso, nas redes sociais, saiu que “Vereadora pediu um minuto de silêncio pelos bandidos”.

Como reagir a essas manipulações? 

Não dá para ficar na defensiva, tem que seguir com o radicalismo nas nossas pautas. E digo radicalismo no sentido de ir fundo nas raízes desses temas. Queremos e precisamos fazer um trabalho para desconstruir, por exemplo, a ideia equivocada que muitas pessoas têm sobre Direitos Humanos, fazer chegar a elas o que realmente significam essas duas palavrinhas, que é o direito universal de viver.

Como continuar o trabalho? 

A primeira coisa, como eu disse, é pontuar a importância de questões relativas a Direitos Humanos, o que significa reafirmar as pautas defendidas pela Marielle. Mas também estamos ocupando espaços, entendendo isso como um instrumento de luta. Precisamos ter mais mulheres na política, mais mulheres negras, mais LGBTs, mais gente para dar visibilidade a essas pautas.

Durante as campanhas eleitorais, muito se discute sobre as propostas da esquerda, que tenderiam a ficar no campo das ideias, não alcançando o eleitor, que quer e precisa se identificar com ações práticas. Como, então, ocupar esses espaços? 

A ideia é potencializar nossa relação com os vários territórios da cidade. Ir lá, ouvir as demandas durante o mandato e não somente na hora da eleição, como é de costume desses coronéis da política. O objetivo é romper com a dinâmica desses urubus do poder, que usam a pobreza para ganhar voto. Isso é um resquício do coronelismo na política. Para quebrar esse ciclo, estamos investindo o tempo do nosso mandato na relação direta com cada território. Dá trabalho, é difícil, mas é a única forma de romper com essa tradição política manipuladora. Se o povo aceita o que certos candidatos fazem, como doações em épocas de campanha, as conhecidas ações de “centros comunitários”, por exemplo, é porque precisa. As pessoas estão carentes de acesso a bens e serviços que só acabam conseguindo pelas mãos desses coronéis. Queremos romper isso, levando o mandato até os territórios. 

Já é possível vislumbrar um retorno para esse trabalho? 

Já percebemos um aumento da mobilização da sociedade no reconhecimento desse trabalho. Há, por exemplo, o Fórum de Luta pela Moradia de Niterói. A mobilização social também conseguiu conquistar o pleito contra o armamento da Guarda Municipal. Temos, ainda, tantas outras mobilizações, como a das mulheres contra violência. Tudo isso comprova que esse modelo é um instrumento de luta dos territórios. Movimentamos a vida política na cidade.