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Comissária da ONU vai ao Alemão ver estragos da chuva

Na comunidade ouviu várias críticas ao governo

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A Relatora Especial da ONU para o Direito à Água e ao Saneamento, Catarina Albuquerque, visitou o Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, nesta quinta-feira (12/12) para contabilizar os estragos causados pelas fortes chuvas e avaliar se os direitos da população estão sendo violados. Os moradores do Alemão contaram à comissária da ONU que as obras do governo do Estado (PAC) e da prefeitura (Morar Carioca) estão causando rachaduras nas casas em diversos pontos do complexo.

Foram relatados ainda problemas de infraestrutura básica, como falta de água, esgoto à céu aberto, coleta irregular de lixo e difícil acesso aos locais mais altos da comunidade. Cerca de 50 famílias estão desalojadas após os registros de desmoronamentos e vários outros barracos estão condenados e podem desabar a qualquer momento em diversos pontos do conjunto de favelas.

O coordenador do Instituto Raízes em Movimento do Alemão, Alan Brum, acompanhou a visita de Catarina Albuquerque e apontou os problemas que mais estão afligindo os moradores do complexo, criticando o foco de atenção do governo do Rio para o teleférico em detrimento aos investimentos com infraestrutura urbana. O Teleférico do Alemão é o carro chefe das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e recebeu o recurso de R$ 210 milhões destinados pelos governos estadual e federal. Brum contou que as famílias que ficaram desalojadas com as chuvas passaram esta madrugada na Estação Palmeiras do Teleférico e foram levadas para casa de amigos e parentes na parte da manhã. Ele apresentou a comunidade da Lagoinha à Catarina, que ficou surpresa com o cenário de miséria e ausência total de infraestrutura básica.

Com uma sandália de dedo rapidamente improvisada, a comissária da ONU seguiu por uma trilha fechada, íngreme, com muita lama e escorregadia até chegar a casa da moradora Avanisa Ferreira Mello, na Lagoinha. Avanisa contou que já contundiu o pé diversas vezes no trajeto que faz todos os dias para chegar em casa, fora outras dificuldades que encontra pela caminho, especialmente nos dias de chuva. Com seis filhos pequenos, a moradora convive com a falta de água e saneamento básico. "Todos os dias eu ando mais de uma hora carregando baldes de água de um ponto de abastecimento até a minha casa, para poder fazer comida, lavar roupa e tomar banho. As crianças me ajudam, carregando garrafinhas de água que eles mesmos bebem.  Antigamente, a associação de moradores daqui fornecia um carnê para a gente pagar a água e mesmo com o pagamento em dia as torneiras continuavam secas. E teve um dia que o rapaz ainda comentou que aqui ninguém precisa de água, porque só mora nesse lugar porcos e ratos. É muito triste ser tratado assim", contou a dona de casa.

Entre as várias perguntas à moradora, Catarina questionou se ela havia comunicado à Cedae sobre a falta de água e a respostas surpreendeu a comissária. "Eu nem sei como fazer isso ou onde fica a Cedae", respondeu Avanisa. Com as chuvas, a casa de Avanisa foi condenada por estar em uma área que oferece risco de desabamento. Porém, ela não precisou enfrentar um mar de lama pegar água. "As duas caixas de água que eu tenho no quintal ficaram cheias com as chuvas e eu estou usando para fazer tudo esses dias, dar banho nas crianças, cozinhar e tudo", disse ela.

Bem perto da casa de Avanisa, o servente Emerson Rodrigues da Silva, de 38 anos,  está preocupado com um barranco que está deslizando gradativamente e pode atingir o seu barraco a qualquer momento. "A prefeitura fez uma mureta para separar o barranco das casas e essa mureta fica no final do meu quintal. Eu estou notando que o barranco e a mureta está desmoronando aos poucos e ainda carregando um pé de abacate. Vai acontecer uma tragédia e eu já cansei de avisar aos agentes da prefeitura que estão trabalhando aqui na região. Sabe o que eles respondem? Que tem que ter paciência que tudo vai ser resolvido. Mas quando? Quando não precisar mais, quando desabar?", questionou o morador. Emerson comentou que a força das águas que desceram do morro e atravessaram o seu terreno só não levou "tudo abaixo" porque "Deus tá segurando". 

O ambientalista Sérgio Ricardo comentou a construção do Parque Ecológico do Alemão, que está incluído no projeto da prefeitura Morar Carioca. Para ele, os R$ 15 milhões investidos no programa não estão sendo bem aproveitados e ainda causando danos à população das regiões da Grota e Lagoinha, já que uma grande área está sendo despropriada e gerando transtornos aos proprietários dos imóveis removidos pelas obras. "A prefeitura quer levar esses moradores para um conjunto habitacional em Santa Cruz, lá na Zona Oeste. Isso é um absurdo, porque muda de forma radical a rotina dessas pessoas. Além disso, muitos proprietários estão reclamando que o governo não está pagando as indenizações combinadas e prometidas", afirmou Sérgio Ricardo. 

Os relatos dos moradores do Alemão e as análises da visita da comissária da ONU vão compor um relatório que será produzido por Catarina e entregue no final do mês de janeiro ao governo federal, com recomendações de melhoramentos e implementação acerca das políticas de direitos humanos. Catarina visitou nesta quarta-feira (11) os municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, que também foram atingidos pelo forte temporal que caiu ontem na cidade. A relatora disse que uma tragédia maior não aconteceu nestas regiões que ela visitou por "sorte", pois os depoimentos dos moradores e o cenário encontrado nas visitas são muito graves. Quanto o abastecimento de água nas comunidades, Catarina disse que o sistema é precário, como também acontece com a rede de esgoto. "Como não tem drenagem da água, quando chove a água se mistura com o esgoto e as pessoas estão na merda. Não tem outra palavra para definir", disse a relatora. 

Catarina acredita que o Rio precisa de políticas públicas para sanar estas questões nas comunidade. "No Alemão, no contaram que a última intervenção do governo foi há 20 anos. Não basta ficar olhando, tem que fazer a drenagem, é preciso tratar o esgoto, tem que ter água para todos e todos os dias", ressaltou Catarina. 

Para a representante da ONG Meu Rio, Leona Deckelbaum, a falta de comunicação entre os governos do estado e municipal nos trabalhos de urbanização no Complexo do Alemão e em outras comunidades carioca é a principal causa dos erros de planejamento e falhas técnicas. "Em primeiro lugar, os governos não explicam para os moradores como funciona o sistema e também não ouvem os apelos e nem observam as maiores necessidades das comunidades. E depois as autoridades também não trocam informações técnicas e muitas vezes são obrigadas a parar projetos porque um interfere no resultado do outro e isso não foi previsto com antecedência. E no final das contas, o morador é o maior prejudicado", disse Leona durante a sua visita ao Alemão também nesta quinta-feira (12).

Obras no Alemão são divididas entre prefeitura e estado

As obras do PAC nas comunidades do Inferno Verde, Mineiros, Palmeira e Matinho são da competência do governo do Estado, enquanto a principal rua do Alemão, a Joaquim de Queiroz e a Lagoinha são atendidas pela prefeitura. Em nota, a Secretaria Municipal de Habitação (SMH) esclareceu que a primeira fase de obras de melhorias no Complexo do Alemão, através do Plano Municipal de Integração de Assentamentos Precários Informais, já foram concluídas. As intervenções tiveram um investimento de R$ 133 milhões e beneficiaram os cerca de 400 mil moradores da localidade.

As obras incluíram a implementação dos sistemas de abastecimento de água, do esgotamento sanitário, viário, de drenagem, de coleta de lixo, de iluminação, além da melhoria das áreas de lazer, com a construção de três praças e aparelhos e atividades culturais. "A SMH ainda possui obras em andamento no Complexo do Alemão no valor de R$ 54 milhões. As intervenções complementares (2ª fase) que estão sendo realizadas são a urbanização das ruas Joaquim de Queiroz e Areal; a Reforma da Creche Municipal João Ferreira (conveniada com a Prefeitura do Rio), a construção do Centro Comercial Galpão Itararé e intervenções nas ruas Jasmim, Santa Bárbara, São Felipe.", diz a nota.

A SMH prevê ainda a instalação de novos sistemas de abastecimento de água, esgotamento sanitário, viário, drenagem, contenções, edificações, paisagismo (reflorestamento e revegetação) e iluminação da rua Joaquim de Queiroz. Além da complementação na comunidade de Nova Brasília, na rodem de R$ 3.315.227,76.

Segundo as informações da Fundação Geo Rio, órgão do governo municipal ligado à Secretaria de Obras, as regiões do Complexo da Penha e do Alemão estão entre as 117 mapeadas com alto risco de deslizamento, segundo um estudo realizado no Maciço da Tijuca e na Serra da Misericórdia, em 2011. "Essas áreas serão beneficiadas com obras de contenção mediante recurso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) - 2, do governo federal, na ordem de R$ 83 milhões, aproximadamente", afirma a nota emitida pelo órgão.

Comunidade da Matinha é a mais atingida por deslizamentos

Apitando. Foi assim que a moradora Denise D´Almeida, da favela do Matinho, alertou os moradores sobre o deslizamento de uma grande pedra de uma das encosta, por volta das 5 horas da quarta-feira passada (11). Denise tentou acionar a sirene instalada pela prefeitura e testada há 15 dias, mas o dispositivo não funcionou. "Eu peguei o apito que tinha em casa e sai fazendo muito barulho pelas ruas daqui, porque eu vi que a pedra ia soterrar os barracos. Mesmo assim teve morador que resistiu sair e passou por um grande susto", contou ela. A líder comunitária Renata Trajano ajudou Denise no resgate dos moradores e, segundo ela, quase todas as casas da Rua Espírito Santo estão condenadas pela Defesa Civil após o desmoronamento, que destruiu cinco barracos.

A pedra atingiu o barraco de Valéria da Cruz, de 25 anos e Wagner Alves, de 37, destruindo parcialmente o quarto onde dormia as duas filhas do casal. "A minha filha mais nova, de 3 anos, estava dormindo no berço e a pedra quase esmagou a cabeça dela. O berço ficou destruído. E a minha filha mais velha tinha saído naquele momento para ir ao banheiro e a cama dela ficou embaixo da pedra. Foi muita sorte, elas nasceram de novo', contou Valéria. O casal perdeu todos os móveis e até as roupas na avalanche e está morando de favor na casa de um amigo. 

Já a moradora da mesma rua, Regina Ribeiro Carvalho, deixou o seu imóvel logo após testemunhar o desastre na casa de Valéria e Wagner e socorrer a sua filha e netos que residem na propriedade ao lado do casal. "Foi horrível, um barulho enorme. Eu corri para socorrer a minha família e ainda ajudei eles saírem das suas camas, que estavam encobertas por terra, pedras e até pedaços do guarda-roupa. A minha neta chegou a ficar machucada na perna, mas não foi nada grave, apenas um grande susto. Vamos todos ficar na casa de parentes e amigos até saber um posicionamento das autoridades, porque agora não temos onde morar. É triste você construir um imóvel, decorar e depois perder tudo que conquistou com muito sacrifício", contou ela.

A aposentada Antônia da Conceição, de 65 anos, está resistindo à intimação da Defesa Civil para abandonar o seu barraco, localizado num dos pontos de maior risco de deslizamento na Matinha. Ela está na companhia de cinco netos menores e alega não gostar de abrigos. "Eu tenho pavor de ficar em abrigos. Só sair daqui no último minuto, se realmente tiver muito perigo", afirmou ela. Antônia está preocupada com a sua situação financeira e não sabe como vai fazer para sustentar os netos que estão sob a sua guarda, caso perca o imóvel. "Eu não tenho para onde ir, ganho apenas um salário mínimo e mais R$ 210 de cesta básica do governo para sustentar seis bocas. Não sei o que fazer", lamentou a aposentada.

A auxiliar de limpeza Carla dos Santos, de 35 anos, também decidiu não deixar o seu imóvel, onde reside com o seu marido e três filhos pequenos. A casa de Carla foi atingida parcialmente por uma das pedras que deslizou da encosta e apresenta rachaduras em dois cômodos. "Em outubro nós procuramos a prefeitura e fizemos o cadastramento para sermos realocados em outra área, já que os agentes municipais estiveram aqui e condenaram o imóvel. Mas a resposta que nós sempre temos é para aguardar que em breve será resolvido. Na chuva da semana passada, parte do telhado voou e ontem a pedra caiu na parte de trás da casa e destruiu um dos cômodos. Estamos ficando mais em casa de parentes do que aqui. Até quando vamos ter que esperar as autoridades tomarem uma atitude?", reclamou a moradora.

Na casa da estudante Thaiane dos Santos, de 15 anos, a situação não é diferente. "A minha mãe já fez o nosso cadastro e a prefeitura nos ofereceu um imóvel em Santa Cruz, o que comprometeria toda a nossa rotina. Então, ela negou a mudança. Continuamos na área de risco e aguardando por uma solução da Secretaria de Habitação", contou Thaiane. 

Os agentes da prefeitura montaram um abrigo na Vila Olímpica do Alemão e estão recebendo os moradores das áreas de risco. Os coordenadores do Instituto Raízes estão recebemos donativos e encaminhando para o local. Segundo Alan Brum, para ajudar aos desabrigados com alimentos, roupas, colchonetes e produtos de higiene, basta levar até a Vila Olímpica ou ligar para o telefone (21) 98777-1237.