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Rocinha recebe contingente de guerra de "braços abertos"

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O tremor provocado pela esteira dos blindados de guerra que passavam deixando marcas pelas ruas e vielas da Rocinha. A ostensividade do armamento policial em um contingente de 400 homens e mulheres do Bope, Batalhão de Choque, Marinha, Polícia Federal, Civil e Militar. O constante rasante dos helicópteros que passavam rentes às casas fazendo sacudir a vegetação e as telhas da comunidade. Tudo isso pareceu estranhamente desnecessário diante da tranquilidade dos moradores que, em sua grande maioria, obedeceram às recomendações das autoridades e permaneceram em suas casas durante as aproximadamente duas horas que as forças públicas levaram para tomar controle da Rocinha.

Nenhum tiro, nenhum esboço de resistência. Ao contrário do que ocorreu no Complexo do Alemão em novembro de 2010, quando houve troca de tiros, fuga e tensão, dessa vez a pacificação parece ter chegado a uma comunidade que já estava de portas abertas para recebê-la.

As janelas permaneciam fechadas e as luzes estavam apagadas quando o barulho dos blindados da Marinha quebrou o silêncio atravessando a linha que divide os condomínios mais luxuosos do Rio de Janeiro, na Gávea, de uma das maiores favelas do mundo logo que o relógio marcou 4h. A luz clara da lua cheia mal refletia o preto fosco das caminhonetes com o símbolo da caveira que subiam a todo o instante. Os homens que os veículos carregavam se confundiam facilmente com a penumbra. O Bope foi o primeiro a entrar. Logo após, começaram os zunidos dos helicópteros.

Mesmo com o clima de guerra instaurado, alguns poucos moradores arriscaram a descida rumo ao trabalho. O mecânico de refrigeração, Gilson Elias, 33 anos, que mora há 12 anos na Rocinha, disse que a chegada da tropa não o assustou. "Acordei agora e não vi nada. Fui revistado. O pessoal do Bope olhou meu documento", contou.

Ao alvorecer, as primeiras luzes do dia revelaram ruas e vielas desertas. A Rocinha, que não dorme nos sábados e que é famosa por feiras e festas nos domingos, lembrava uma cidade fantasma dos filmes de faroeste. Às seis horas, quando tudo parecia se encaminhar bem, uma rajada de fogos de artifício, recurso normalmente utilizado por traficantes para denunciar incursões na favela colocou todos em alerta. A caixa d'água de uma das casas próximas à estrada da Gávea, que corta a favela, estourou. Uma pequena cachoeira se formou pela rua. Ninguém apareceu para consertar ou para reclamar do ocorrido. O vazamento continuou até que a água aos poucos se esgotasse.

Pouco depois, o rádio da patrulha policial que fazia a contenção para evitar eventuais fugas de traficantes anunciou que o Bope já tinha o total controle da comunidade. A Rocinha foi aos poucos se revelando. Nada de barricadas, nada grupos armados em fuga ou tentando resistir. Dois blindados repousavam quietos em frente a uma creche. Uma senhora foi até a janela. Abanou para os jornalistas mostrando uma cortina branca. Sorria.

Logo um homem desceu uma das ladeiras. Comentou que ali o trânsito de bandidos armados era intenso. Disse que não via a hora da ocupação chegar. Outros, mais ressabiados, se limitavam a seguir seus caminhos, sem falar com ninguém. Apenas às 7h30 um mercado abriu próximo à Rua 1. O comércio de João dos Santos, que normalmente abre a partir das 6h, não demorou a ficar lotado. Os moradores compravam pão e frios para o café da manhã. "As contas vencem", justificava o comerciante que decidiu não fechar as portas no domingo de ocupação.

A Rua 1 é uma ladeira íngreme, apertada, que desce a comunidade a partir da estrada da Gávea. No caminho, construções desordenadas e acessos estreitos a mais vielas íngremes e apertadas. A fiação elétrica acompanha a via tão emaranhada quanto as próprias passagens. Às vezes os fios descem perigosamente até a altura da cabeça dos transeuntes. O chão de concreto, coberto por todo o tipo de lixo oferece perfeito banquete a insetos como moscas, que crescem vigorosas e voam pousando em tudo que lhes parece saboroso, não importando que se mexa ou não.

Canais de esgoto passam por vias abertas. Em grupos, homens do Bope sobem e descem, fazem perguntas, vasculham os labirintos em busca de drogas, armas e fugitivos. Mulheres passam com crianças. Adolescentes são revistados.

Uma música alegre sai de um dos poucos estabelecimentos abertos. Nele, um homem de chapéu típico nordestino se esforça para atender os pedidos de uma horda de clientes inusitados. Sanduíches, café, refrigerante. Erasmo Rodrigues, 53 anos, sendo 33 de Rocinha, serve um esquadrão dos caveiras que havia parado ali para um descanso. Mas Erasmo não quer saber das possibilidades de lucro com a pacificação. Um cartaz anuncia que o estabelecimento está a venda. "Sei que vai valorizar, mas estou pedindo o mesmo preço. Sinto falta das mulheres do Ceará, rapaz. Estou voltando", justifica.

Aos poucos os moradores foram se expondo em maior número. Reconheciam terreno, observavam e acabavam parando em grupos, olhando para o crescente contingente de repórteres, fotógrafos e câmeras de TV que subiam com coletes a prova de balas e veículos da imprensa. Faziam perguntas como "o que você está achando?", "Sentiu medo", "Onde é a casa do Nem?"

A maioria não falava. Alguns se abriam sobre seus sentimentos. Mas ninguém ousava falar abertamente sobre a atuação do tráfico. A troca de poder ainda era muito recente e carece de confiança. "Entrevista? Só para a TV", brincava uma moça de uma janela com sua vizinha. Ao ver que alguns repórteres ouviram a conversa, as janelas se fecharam.

No caminho de uma das ladeiras, tão íngreme quanto se pode imaginar, uma excursão de caminhonetes da Polícia Federal seguida por homens da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil subia para verificar a denúncia de um paiol com armamentos do tráfico. Moradores começaram a sair para as janelas, subir nas lajes e se concentrar nas portas para ver o movimento. Ao perceber o sofrimento de um repórter na luta contra o calor e a lei da gravidade, uma moradora se comoveu: "Que é isso, meu filho, tão novo e tão cansado. A gente sobe isso aí todo o dia". Logo apareceu com uma jarra de água para distribuir aos passantes, demonstrando o acolhimento local. "Sou botafoguense. O pessoal que torce para outros times não faria isso", brincou.

Aos poucos, cada vez menos aspectos pareciam remeter à guerra eminente tão temida pelos moradores. A ocupação se dava em clima amistoso. Até mesmo olhares ressabiados e ameaçadores, característicos de outras ocupações eram menos latentes ou quase imperceptíveis na Rocinha.

Até o início da noite, o saldo da operação era de quatro presos, 20 pistolas, 15 fuzis, duas espingardas, uma submetralhadora e três granadas apreendidas. Nada de feridos, nada de mortos. Ninguém escutou um tiro sequer durante todo o dia de ocupação. Cerca de 200 homens ainda são procurados e a polícia não terminou o processo de varredura. Ainda levará tempo para que a confiança seja estabelecida. Mas a operação, da forma que ocorreu, parecia ser desejada e aguardada.

"A gente vivia no meio do fogo cruzado. Merecíamos essa atenção do poder público", afirma o taxista Pedro Manuel da Silva, que mora há mais de 30 anos na Rocinha. Pedro confessou que tinha medo de criar os filhos em um ambiente controlado por traficantes.

Em meio aos rasantes dos helicópteros, o Bope hasteou a bandeira nacional e a do estado do Rio de Janeiro em uma praça em frente à UPA da Rocinha. Mais de 200 moradores acompanharam a cerimônia e bateram palmas. Um grupo ligado à associação de moradores fez um protesto. O apelo foi por justiça social. "Queremos mais pavimentação, mais escolas, mais creches para as nossas crianças", dizia Leonardo Rodrigues Lima, presidente da associação. É uma etapa que não pode ser negligenciada no caminho de uma comunidade que abriu as portas para a paz.