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Crítica teatro - 'Os Altruístas', por Ana Lúcia Vieira Andrade

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Os Altruístas é, entre as peças de Nicky Silver, uma das que obtiveram menor sucesso de crítica em Nova York.  Tema e estilo acabaram considerados um tanto repetitivos, e um certo reducionismo na construção das personagens e de suas motivações também foi apontado.  Contudo, para além das falhas percebidas no momento de sua estreia, o texto de Os Altruístas marcou, desde o início, pela apresentação de um ótimo papel feminino que dominava a cena de maneira surpreendente, exibindo, de modo agressivo, graça e desespero, em mais uma sátira destruidora ao egoísmo e à falta de solidariedade na América contemporânea. 

Sydney, jovem atriz de telenovelas, comete um assassinanto.  Com a ajuda do irmão, assistente social, pretende esconder o corpo e livrar-se da responsabilidade pelo crime.  Enquanto isso, dois manifestantes planejam o próximo protesto público sem saber exatamente contra o quê irão protestar.  Três das personagens desprezam o materialismo e dedicam-se às causas humanitárias; contudo, vivem do dinheiro de Sydney, apesar do desdém com o qual veem seu trabalho.  Levam suas vidas cinicamente, com pouca auto-consciência a respeito da própria miséria.  “Amor é algo que a gente lava no bidê”, afirma a jovem atriz ao irmão, ilustrando o deserto de emoções em que habitam.

A montagem de Guilherme Weber, em cartaz no Teatro Tom Jobim, no Jardim Botânico, tem o mérito de mostrar despudoradamente o universo de violência e estupidez no qual as personagens estão imersas, enfatizando, na verdade, a grande indiferença pelo Outro que marca a trajetória do sujeito contemporâneo.  Tudo isso com largas doses de cinismo e humor anárquico.

O elenco identifica-se de maneira plena com os objetivos traçados pela direção.  Mariana Ximenes cria uma Sydney sobrecarregada, excessiva, noturna, apesar de o papel original indicar mais propriamente um contraponto entre a luminosidade exterior de sua aparência, característica de alguém que tira seu sustento de viver heroínas cheias de vitalidade na TV, e a escuridão de uma personalidade narcisista, neurótica ao extremo.  Kiko Mascarenhas realiza ótimo trabalho como o irmão gay assistente social.  Suas cenas estão carregadas de fina ironia.  Jonathan Haangensen dá ao michê Lance a dose correta de ingenuidade.  Miguel Thiré explora a frieza de seu Swallow e cresce na parte final da peça.  Stella Rabello cria uma Cybil cheia de raiva e frustração, incapaz de agir a favor de si mesma.

O cenário de Daniela Thomas e os figurinos de Emília Duncan e Antônio Frajado seguem a linha proposta pelo direção,  retratando um universo negro, sujo, desestruturado. Guilherme Weber, como adaptador, insere no texto algumas referências brasileiras, ainda que isso não seja fundamental para aproximá-lo da plateia, que se identifica desde o início com o que vê.

A obra de Nicky Silver, apesar de trabalhar com temas muito explorados pelos mais variados veículos e, também, pela dramaturgia do final do século XX, projeta um estilo muito particular, ferino, cruel, cômico e grotesco.  Suas criaturas são marcantes e sabem desvendar, ao mesmo tempo, de maneira cínica e lírica, a dor contemporânea de existir.

Cotação: *** (Ótimo).