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Reforma política: mudanças privilegiam interesses políticos, dizem especialistas

"O intuito não é modernizar o sistema, mas encontrar um que beneficia a classe política"

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Passada a denúncia contra o presidente Michel Temer (PMDB), os parlamentares correm contra o tempo para aprovar uma reestruturação do sistema eleitoral até o início de outubro, para que as novas regras possam valer nas eleições de 2018. As ideias principais em debate são a aprovação do ‘distritão’ – sistema em que serão eleitos os deputados federais mais votados em cada estado -, e do fundo de financiamento público de campanha, substituindo as doações empresariais. Contudo, especialistas analisam que as mudanças, na verdade, privilegiam interesses políticos.

A reforma política, ainda segundo especialistas, ganhou caráter fisiológico e deve ser votada às pressas, como aconteceu com a reforma trabalhista. Há pouco mais de um mês, a trabalhista foi aprovada pelo Senado mediante um ofício da Presidência que prometia correções por meio de medidas provisórias. Porém, até agora, nenhuma delas foi editada.

Diante da divergência de partidos, a comissão destinada a analisar um dos projetos que tramitam na Casa cancelou a votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do deputado Vicente Cândido (PT-SP), que ocorreria na última terça-feira (8). O relator alterou seu parecer original e apresentou nesta quarta-feira (9) uma proposição em que mantém o sistema eleitoral atual para 2018 e 2020, e estabelece que o novo sistema deverá ser regulamentado pelo Congresso em 2019 e, se regulamentado, passaria a valer para as eleições de 2022.

O relatório está sob discussão na comissão. O parecer do deputado prevê, entre outros pontos, a possibilidade de revogação popular de mandatos eletivos; extinção da figura dos vice-presidente, vice-governadores e vice-prefeitos; redução da idade mínima para candidatos a governador de 30 para 29 anos; e eleição direta para as funções de presidente, governador e prefeito no caso de vacância nos três primeiros anos do mandato.

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Para o professor de Legislação do Instituto Josué de Castro da UFRJ, o advogado Marcos Kalil Filho, é provável que a reforma passe na Câmara, pois “a votação entrega para os políticos o que eles querem”.

“É um interesse da classe política”, acrescentou Kalil, para quem a expressão “classe política” por si só demonstra que esses interesses estão desvinculados da representação popular, condição primordial de uma sociedade democrática.

O cientista político da UFPR Ricardo de Oliveira tem dúvidas sobre a aprovação da reforma, porém, para ele, “se passar, será precária e frágil, e com certeza, não resistirá à próxima eleição democrática”.  

Oliveira afirma que a Câmara não tem “autoridade, nem credibilidade para discutir um assunto importante, necessário e complexo como uma reforma política nessa conjuntura”. Segundo o cientista político, qualquer coisa aprovada às pressas no atual cenário, vai ter o endosso dos interesses políticos desse grupo que está no poder. “Esse é um péssimo momento, uma vez que essa legislatura é a mesma que votou no [Eduardo] Cunha para presidente da Câmara, e a mesma que há poucos dias protegeu o Temer de ser processado por crime comum. Ou seja, sem legitimidade e totalmente desmoralizada”.

As sugestões da Câmara promovem mudanças na Constituição, na Lei de Eleições, no Código Eleitoral e na Lei dos Partidos Políticos. Para valerem já no ano que vem, as novas regras previstas para o pleito precisam ser aprovadas até 7 de outubro, ou seja, um ano antes das próximas eleições.

Na quinta-feira (3), em entrevista à rádio Band News, Temer voltou a citar o parlamentarismo como alternativa para a reforma política. "Poderíamos pensar em parlamentarismo para 2018. Não seria despropositado", disse.

Para os especialistas, o parlamentarismo repetidamente citado por Temer é uma forma de dar continuidade ao atual Congresso, e, consequentemente, o tipo de governo defendido pelo peemedebista.

“O modelo de aliança entre Executivo e Legislativo se rompeu com o fortalecimento do Legislativo, que ganhou protagonismo desde a ascensão da figura do Cunha na Câmara. O Temer fala isso para privilegiar o Legislativo, já que ele funciona como chefe dessas forças nesse momento. Através do parlamentarismo, eles se mantém no poder”, comentou Kalil. 

Distritão

A proposta também institui o sistema distrital misto, o chamado ‘distritão’, que valerá a partir de 2022 nas eleições para deputado federal e estadual e vereador, nos municípios com mais de 200 mil eleitores. O sistema de lista pré-ordenada seria adotado nas cidades com menos de 200 mil eleitores.

Atualmente, os candidatos são eleitos no modelo proporcional com lista aberta. A eleição passa por um cálculo que leva em conta o quociente eleitoral, ou seja, os votos válidos no candidato e no partido. Esse modelo permite que os partidos se juntem em coligações. Pelo cálculo, é definido o número de vagas que cada coligação terá direito, elegendo-se, portanto, os mais votados das coligações.

No distritão, cada estado será transformado em um distrito. Em São Paulo, por exemplo, que tem direito a 70 cadeiras na Câmara, seriam eleitos os 35 candidatos mais votados, independentemente de coligação ou partido. O eleitor, nesse caso, vota duas vezes: uma na lista preordenada pelo partido e outra no candidato de seu distrito. Os votos recebidos pelo partido são contabilizados de forma proporcional e indicam o número de cadeiras a que tem direito. Os votos nos candidatos dos distritos são contabilizados de forma majoritária, considerando metade das cadeiras.

Em seu parecer, Cândido justifica que a escolha pelo voto distrital misto visa anular a possibilidade de eleição de candidatos com poucos votos, o que ocorre com frequência no sistema atual pelos chamados "puxadores de voto".

O advogado Marcos Kalil conta que esse sistema eleitoral é muito raro no mundo todo. Segundo ele, apenas Afeganistão, Jordânia, Vanuatu e Pitcairn possuem o modelo “distritão”. “É importante observar que são quatro países que não têm tradição democrática em sua história. Ou seja, é um indício de que o intuito não é modernizar o sistema, mas novamente encontrar um sistema que beneficia a classe política, para resistir aos ataques que ela vem sofrendo”, acrescentou.

As coligações são tema de diversas críticas entre os cientistas políticos. A impressão é de que, com a reforma política, extinguem-se os problemas. Entretanto, para Kalil, o sistema proposto privilegia quem já está no poder e tem dinheiro da máquina pública para investir em voto. “Ele tira o poder dos partidos, acaba com o voto em legenda, e o sistema elege os mais votados, reforçando o personalismo e a despolitização”, completou.

Oliveira também afirma que o “distritão” beneficia apenas o “individualismo dos parlamentares que querem a reeleição”. Para ele, esse sistema eleitoral é a “fórmula ideal para que esses políticos atinjam seus objetivos”, acrescentou.

Financiamento de campanha

Com a proibição do financiamento empresarial de campanhas, determinada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015, há uma expectativa de diminuição de receitas. Caso aprovada, a PEC institui o Fundo Especial de Financiamento da Democracia, que será mantido com recursos públicos. Para 2018 o valor do fundo corresponde a cerca de R$ 3,6 bilhões, 0,5% da Receita Corrente Líquida no período de junho 2016 a junho de 2017.

A proposta não mexe na proibição de financiamento de empresas para campanhas políticas. Entretanto, o texto prevê novas regras para o financiamento privado de pessoas físicas.

Para 2018, cada pessoa física poderá doar, para cada função, até 10 salários mínimos ou até 10% da receita bruta declarada no exercício financeiro do ano anterior. Prevalece a que tiver o menor valor. Além disso, candidatos a deputado federal e estadual poderão doar para as próprias campanhas até o limite de 7% do teto de gastos para cada cargo.

Kalil lembra que a ideia de financiamento público tem o fundo progressista, e que já vem sendo discutida há anos como forma de barrar a corrupção, entretanto, devido ao contexto em que está inserida, a proposta é apresentada “como mais uma forma facilitar o financiamento de campanha”.

“É uma resposta às pressões que a classe política vem sofrendo do judiciário e do próprio poder econômico, porque tendo dinheiro para financiar, eles não vão precisar tanto do poder privado, e isso, consequentemente, aumenta o poder de barganha dos políticos”, disse o advogado, acrescentando: “Não é para que eles tenham independência, é para que eles tenham mais poder político na hora de negociar seus interesses. Não podemos isolar o projeto do contexto político e do pacote de reforma que ele está inserido”.

Para ambos especialistas, a reforma política necessária deve rever todo o sistema. “Para isso, o governo precisa ter legitimidade. Agora já no final dessa legislatura, o máximo que teremos é um remendo de oportunismos precários, sem solucionar os problemas”, finalizou Oliveira.

“É preciso pensar em uma reforma que seja discutida com a sociedade e que apague os problemas do sistema eleitoral”, concluiu Kalil.