ASSINE
search button

Redução da maioridade favoreceria violências contra adolescentes

Medida da Câmara colocaria menores à mercê de crimes como a pedofilia

Compartilhar

Muito se discute se a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos resolveria a criminalidade nas grandes cidades brasileiras, mas não se coloca em destaque a que situações esses adolescentes seriam submetidos nas penitenciárias, caso a proposta (PEC 171/93) da Câmara dos Deputados entre em vigor. A possibilidade desses adolescentes ficarem sujeitos a violências sexuais, que poderiam representar ainda crimes como a pedofilia, seria apenas uma face dessa medida, analisam juristas consultados pelo JB. Para eles, é inconstitucional não apenas o ato de desproteger esses menores, como todo o projeto em si, que poderia ser barrado pelo Superior Tribunal Federal. O argumento de que eles seriam colocados em locais separados nas cadeias também não convence os especialistas, já que, na prática, não vingaria.

Como se lidaria com a sexualidade desses adolescentes nas cadeiras brasileiras? A Lei 12.594/2012 que Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) regulamentou medidas destinadas a menores, como o direito a visita íntima, quando comprovado vínculo conjugal. Nas cadeias brasileiras, se o projeto de redução entrar em vigor, os que não tivessem esse vínculo poderiam ficar mais suscetíveis a possíveis investidas dos adultos, o que conjugaria crimes como a pedofilia. 

O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê entre seus artigos que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.” A partir do momento que um adolescente passa a cumprir pena no sistema penitenciário e não mais uma medida socioeducativa, contudo, pela sua condição de fragilidade, ele fica sujeito a todo tipo de violência, inclusive sexual, destaca Antônio Lázaro Martins Neto, professor de Direito Penal em cursos de graduação.

"Quando esse adolescente for cumprir uma pena ele ficará mais exposto às violências que podem acontecer no sistema prisional, em especial, a violência sexual. Por ele não ter uma formação completa, naturalmente ele vai estar fragilizado em relação aos outros", alerta Martins Neto. 

Para atender às características e necessidades de um adolescente, sua pena teria que ser individualizada, explica Martins Neto. "Se não houver esse tratamento individual, se você colocar ele no mesmo local que um adulto, dar o mesmo tipo de tratamento, aí, sim, você estaria afrontando a Constituição." O Estado precisaria estar preparado para dar o tratamento devido ao adolescente, caso o projeto de redução da maioridade seja implementado, para que a pena cumpra seu objetivo de ressocializar. A questão, acredita o professor, é que o Estado não está preparado.

"O Estado não tem ainda estrutura e nem tem efetivo para receber esses menores. Se essa medida entrar em vigor, ele vai ter que se adequar, (porque) está totalmente fora do padrão. Hoje, do jeito que está, não tem como. A estrutura é muito frágil, se protege muito mal aqueles que estão mais expostos, os estupradores, pessoas que são figuras públicas, que se você colocar no meio dos outros presos eles vão usar da violência, e isso você já faz com muita dificuldade, numa linha muito tênue entre a proteção e a desordem", alerta Martins.

Martins ressaltou que os adolescentes às vezes praticam crimes muito violentos porque não têm os mesmos freios morais que um adulto. "Se você coloca ele no sistema prisional e não protege ele adequadamente, ele vai ser totalmente influenciado, ele vai ser totalmente cooptado para o mundo criminoso." 

Thiago Bottino do Amaral, professor da FGV Direito Rio, chama a atenção para a situação atual dos presídios brasileiros, "lugares horrorosos, extremamente violentos", onde o Estado não consegue garantir a segurança. "A gente vê essas rebeliões, a gente vê o que acontece. O presídio é um local onde o Estado não consegue impor a sua autoridade, de modo geral. Essa violência com certeza vai se dirigir de forma mais intensa contra os adolescentes, porque são mais fracos, porque são mais novos, porque não têm as conexões com os criminosos como os adultos eventualmente já têm."

Sobre o argumento de que esses adolescentes ficariam separados dos adultos, Amaral lembra que, mesmo entre adultos, separações não são respeitadas, como no caso da necessidade de presídios para pessoas que cometeram crimes sem violência e de presídios para pessoas que cometeram crimes com violência. 

"Essa separação, embora seja determinada pela lei, o Estado também não é capaz de cumprir. Nunca cumpriu, e não vai ser agora que vai cumprir. Então, se também colocar esses adolescentes em contato com criminosos muito mais perigosos, muito mais violentos, é um motivo a mais pelo qual a gente não deveria optar por esse caminho da redução da maioridade", explica Amaral. "Chega a ser enganoso dizer que esses jovens seriam preservados no presídio porque a gente sabe que não serão."

Os adolescentes infratores já são punidos e já recebem medidas de segurança, internados em estabelecimentos específicos, continua o professor da FGV. Com a redução da maioridade penal, eles não deixariam de ser menores, mas teriam uma responsabilidade penal mais grave. A maioridade civil continua sendo de 18 anos, por exemplo, para fazer  um contrato ou um testamento. "A única discussão que se quer é que ele tenha então uma responsabilidade penal, como se ele fosse um adulto. Ele continuaria menor e a gente desistiria de uma obrigação constitucional de proteger esse adolescente."

Para Amaral, é dever da sociedade se colocar contra contra a proposta de redução da maioridade penal, porque ela significa um retrocesso, em termos de civilização, em termos de humanidade. Ainda assim, se essa redução for aprovada, acredita o professor, o Supremo poderia declarar a inconstitucional, por violar uma cláusula pétrea - dispositivo constitucional que não pode ser alterado nem mesmo por Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Para isso, explica, alguém teria que ajuizar uma ação direta de inconstitucionalidade.

Cristiano Avila Maronna, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), também chamou a atenção para o fato de que nos presídios a proteção aos presos já só existe no papel. Na prática, todo tipo de violência é praticada. O que acontece também nos estabelecimentos destinados aos menores, apesar de haver preocupação com a reinserção social. A questão, acredita, é que reduzir o a idade de início da maioridade penal tornaria esse quadro ainda mais grave.

"Nos estabelecimentos para menores ainda existe alguma possibilidade de controle, de separação. Os menores, por mais envolvidos com o crime que eles estejam, eles normalmente não são os líderes da facção, enquanto os presídios para adultos há esse contato direto com a liderança, há uma cooptação mais direta. Então, esse é um processo que já existe mas certamente se acentuaria se o indivíduo fosse colocado junto com lideranças criminosas, mais velhas, não aos 18, mas aos 16 anos", explica Maronna.

Além disso, acredita Maronna, o país tem uma política criminal de guerra ao crime, de enfrentamento do crime por meio da violência, com uma polícia que mais mata e também a que mais morre do mundo. E essa guerra contra o crime, essa matança promovida pela polícia, não tem como resultado a diminuição dos índices de violência. Ao contrário, se percebe que os índices de violência só aumentam. Reduzir a maioridade penal se insere nesse contexto de uma política criminal bélica, que não está funcionando. Seria acentuar e radicalizar algo que já não está dando certo. 

"Eu penso que nós deveríamos ter uma outra discussão, que passa longe da discussão sobre a redução de idade início da maioridade penal, mas passa, por exemplo, pela desmilitarização da polícia, pela refundação da polícia civil, pela busca de mais eficiência nas investigações dos crimes para uma atuação integrada entre polícia e Ministério Público, uma reformatação do sistema de justiça criminal – acho que esses são os verdadeiros problemas que poderiam ser objeto de uma discussão mais serena, mais honesta por parte dos nossos legisladores", sugere Maronna.

A discussão a respeito maioridade penal é uma discussão populista, que acaba sendo conduzida por alguns setores mais conservadores, por um setor da mídia mais sensacionalista, que exploram o medo e a ignorância da população em nome do recrudescimento da punição, acredita Maronna. "Nós estamos sempre vivendo esse círculo vicioso -- discussão para tornar as leis penais mais duras, novos problemas, novos casos trágicos e mais proposta de endurecimento. (...) Infelizmente, essas questões essenciais são deixadas de lado em nome desse populismo penal, dessa opção por aquilo que a gente chama de direito penal do terror."

"Eu quero crer que, na hipótese de essa mudança ser aprovada, o Supremo Tribunal Federal irá invalidá-la, porque há uma afronta ao que a gente chama de um núcleo constitucional intangível, quer dizer, constitucional, que não é modificável, justamente porque diz respeito ao que a gente chama de mínimo ético, que deve orientar a atuação do Estado. Então, vejo com muita tristeza esse movimento de mudança", destacou.

>> Jovem é punido com mais rigor que adulto, diz presidente da Fundação Casa

>> Sistema prisional do país não suporta redução da maioridade, dizem especialistas

>> Redução da maioridade penal é retrocesso, alerta socióloga

>> Para ONU, redução da maioridade penal pode agravar violência no país

>> Ministro reafirma que governo é contra redução da maioridade penal

Eufrásia Maria Souza, coordenadora da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, alerta que o próprio projeto de redução da maioridade penal é inconstitucional. "De nenhum prisma a redução da maioridade penal apresenta qualquer vantagem, primeiro porque a gente tem que aperfeiçoar o sistema socioeducativo para que os adolescentes realmente sejam ressocializados e não aconteça o que vem acontecendo."

Lembrando que no Rio de Janeiro, só neste ano, foram três mortes de adolescentes dentro de unidades socioeducativas, Eufrásia defende que o sistema precisa ser melhorado, aperfeiçoado. Destaca ainda que o grande número de atos de violência não é praticado por adolescentes e crianças, que são muito mais vítimas de violência do que autores de ato infracional. 

"[A redução da maioridade penal] só tende a piorar os problemas que já existem no sistema socioeducativo. Se no sistema socioeducativo existe o problema de violência entre os adolescentes, inclusive quando tem algum que já alcançou maioridade em relação a outros, levar os adolescentes para a penitenciária ia tornar essa violência, essa vulnerabilidade desse adolescente, ainda maior, só iria piorar a situação que a gente já vive", acredita.

Heber Boscoli, conselheiro tutelar no Rio de Janeiro,também alerta para os perigos de uma redução da maioridade penal, lembrando que os países que reduziram não viram queda nos índices de violência, e agora estão repensando essa política. "Querem copiar alguns países como os Estados Unidos porque lá se pune. Mas lá eles dão oportunidades. Aqui, você não consegue colocar uma criança na escola, não consegue colocar uma criança na creche. Você não faz nada para esse jovem, espera ele fazer 18 anos, e pune."

Boscoli ressalta que vários meios de comunicação têm dado ênfase a essa possibilidade de redução, "incriminando jovens", "forçando a barra", como no caso do médico morto na Lagoa. "Eu não sei exatamente onde essas autoridades, essas pessoas, querem chegar fazendo isso. Porque se gasta tanto com tanta coisa que não funciona e não investem no ser humano?" questiona. No último final de semana, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), anunciou pelo Twitter que colocaria a proposta em votação no plenário até o final de junho.

Boscoli trabalha na Rocinha com vítimas de exploração sexual, e acompanha no dia a dia a triste realidade de crianças e adolescentes abandonados por suas famílias, pelo Estado e pela sociedade. "As pessoas não estão pensando no quanto esse projeto é cruel. Tiram todos os direitos e depois ainda punem. Alguém tem que ser responsabilizado porque todos nós estamos nos omitindo de alguma forma."

Nesta terça-feira (2), o relator da comissão especial que analisa o projeto na Câmara, o deputado Laerte Bessa (PR/DF), informou que apresentaria seu parecer na próxima quarta-feira (10), com a intenção de colocá-la em votação até o dia 17 deste mês. Bessa adiantou ainda que sua posição deve ser favorável à redução da maioridade. “Uma coisa é certa: será dada uma resposta imediata para a sociedade brasileira, que está clamando pela redução da maioridade”, declarou.