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Durante audiência em SP, mulheres relatam violência no parto

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Há dois anos, a secretária Luciana Periqui, de São Paulo, viu o parto do primeiro filho ganhar contornos de um filme de terror. Era para ser o melhor dia de seus então 25 anos; se tornou, como ela própria define hoje, “uma cicatriz a se tratar pelo resto da vida”. “Só espero que não tenha passado por isso em vão”, diz.

Luciana conta ter procurado um local de apoio à gestante para realizar o parto natural, planejado por ela e pelo marido; após 18 horas em trabalho de parto, sem sucesso, foi encaminhada a um hospital público na zona sul de São Paulo. Lá, diz ter sido tratada com hostilidade já na triagem, dada a transferência – mas não só. "Me mandaram duas vezes calar a boca, porque eu estava gemendo de dor e queria meu marido perto de mim. Na sala de parto, onde me deram ocitocina (medicamento usado para induzir o parto), senti a cabeça do bebê sair na primeira contração; na segunda, ele nasceu”, diz. “Minha vagina ficou segmentada, meu marido foi impedido de acompanhar o parto. Quando conseguiu entrar, estava muito exaltado, chorando. Ele virou motivo de chacota até entre os seguranças do hospital, que prometeram arrumar uma chupeta e dar a ele”.

Hoje, o filho de Luciana tem dois anos e oito meses. Ele é saudável. Quem carrega as histórias de dor e trauma é a mãe, que só conseguiu entender que passara por uma situação de violência obstétrica um ano depois, ao escrever sobre a experiência que a atormentava, afirma, diariamente. A justiça negou a ela a reparação por danos morais duas vezes. Mesmo assim, nesta segunda-feira, a jovem deu mais um passo: expôs sua história a uma plateia de homens e mulheres –algumas, vítimas como ela – em uma audiência pública sobre o tema realizada no Ministério Público Estadual.

Durante um dia inteiro, médicos, promotores, defensores públicos, professores universitários, representantes do Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo), da Câmara dos Deputados, do Ministério da Saúde e da Prefeitura debateram o tema que nem sempre é claro para a vítima, mas que há décadas vem sendo registrado em hospitais públicos e privados do Brasil. Ao final, as próprias vítimas da violência obstétrica deram seus relatos –acompanhados por uma plateia ora apreensiva, ora emocionada com os detalhes das histórias.

Assim como Luciana, segundo os debatedores, ainda são realidade de gestantes os casos de violência verbal, de transgressão à lei que permite a presença de um acompanhante (vigente desde 2005) e à que coloca à mulher a escolha pelo tipo de parto e o local onde vai querer parir (vigente desde 2007). Outros casos também relatos citam a pressão na barriga da gestante, nos partos naturais, para supostamente facilitar a saída do bebê –prática há anos desaconselhada pelos organismos internacionais de saúde. Nesse contexto, aliás, o Brasil novamente segue exemplo do que não se fazer: é o campeão mundial de realização de cesáreas, com 56% de todos os partos realizados, quando a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda que esse índice não avance os 15%.

Estudos recentes (de 2010) da Fundação Perseu Abramo revelaram que, a cada quatro mulheres, ao menos uma já passou por alguma situação de violência relacionada ao parto –estatística que, entretanto, considera uma subnotificação alta.

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“Há que se atuar muito ainda na formação profissional e cultural na área da saúde; além disso, fizemos um pedido ao governo para que haja campanhas permanentes sobre a necessidade do parto natural, e do parto humanizado. O erro já começa na concepção de a mulher que quer fazer a cesárea com o médico ‘dela’, e ‘só com ele’: é preciso confiar em uma equipe, e em um sistema onde tenha no mínimo um profissional que segure a mão da mulher. A cultura do aleitamento materno levou três décadas para mudar, e tenho certeza que as mudanças de agora estão mais aceleradas – logo a violência obstétrica não mais será possível”, disse a coordenadora geral de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, Maria Esther Vilela.