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Meses que antecederam golpe foram marcados por ambiente libertário

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Naquela terça-feira, 31 de março de 1964, faziam sucesso nas telas do Rio de Janeiro os filmes Lawrence da Arábia, estrelado por Peter O'Toole, Os Criminosos Não Merecem Prêmio, com Paul Newman, Sodoma e Gomorra e o brasileiro O 5º Poder. Esse último tinha o elenco encabeçado por Eva Wilma, a grande estrela da TV na época, por conta do seriado Alô, Doçura, em que contracenava com o então marido John Herbert.

Nos palcos, Fernanda Montenegro estrelava Mary, Mary, no Teatro Copacabana. A comédia Três em Lua de Mel, com Daisy Lucidi e André Villon, comemorava dois anos em cartaz no Teatro Mesbla, enquanto outra comédia, Os Direitos da Mulher, fazia sucesso no Teatro Santa Rosa, com Jardel Filho à frente do elenco. O teatro do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) - no prédio da Praia do Flamengo, que no mesmo dia seria incendiado pelos golpistas - anunciava nos jornais o 4º Festival de Cultura Popular.

Transportar o leitor para os três meses – janeiro, fevereiro e março – que antecederam o golpe militar foi o que pretendeu o jornalista Roberto Sander ao escrever o livro 1964 – O Verão do Golpe, lançado no Rio de Janeiro, em dezembro do ano passado. Naquele verão, a conspiração que derrubou o governo de João Goulart já estava bem avançada, mas aparentemente nada indicava que o país estava prestes a entrar em um regime de exceção, com perseguições políticas, cerceamento das liberdades, torturas e tudo o que se seguiu.

O ambiente cultural da época era marcado em todo o mundo por movimentos libertários, segundo o autor. “Nos anos 60 tudo acontecia: o primeiro LP dos Beatles chegando ao Brasil, a Nara Leão estourando como uma grande intérprete, a bossa nova vivendo ainda seu momento de efervescência”, lembra.

Ainda na música popular brasileira, o verão de 1964 foi marcado pelo êxito estrondoso do primeiro LP de Jorge Ben Jor (então chamado Jorge Ben), Samba Esquema Novo, lançado no final de 1963. “Foi um disco considerado revolucionário para a época, com músicas como Mas Que Nada, Chove Chuva, Balança a Pema e outras, que perduram até hoje e que viriam a se tornar sucessos internacionais. Tudo isto estourou naquele verão”,  destaca Sander.

No carnaval daquele ano, o grande sucesso era uma marchinha até hoje cantada pelos foliões nas ruas e nos bailes. Cabeleira do Zezé, de João Roberto Kelly, era uma referência direta aos rapazes que começavam a aderir à moda dos cabelos grandes, seguindo a onda dos Beatles e de outras bandas do iê-iê-iê. No começo de 1964, a beatlemania já ultrapassava as fronteiras do Reino Unido.

O autor critica o papel da imprensa nos três meses que antecederam o golpe e lembra os editoriais dos principais jornais da época. “A atuação da grande imprensa no período que antecedeu a queda de [João] Goulart foi uma página negra na história do jornalismo brasileiro. O apoio foi incondicional aos conspiradores. Em todo o processo, a imprensa apoiou de forma efetiva e sistemática tudo aquilo que estava acontecendo para que a democracia acabasse no Brasil”, frisa Sander.

Para ele, o argumento de que estava se tentando garantir a democracia, usado pelos jornais para justificar a conspiração, não passava de uma grande falácia. “Havia ampla liberdade de expressão no governo João Goulart e a polarização ideológica era muito forte. Se acusava o governo João Goulart de estar preparando um golpe, o que era uma mentira, pois quando houve a derrubada pelos militares, a reação foi nenhuma. Jango até se recusou a municiar sindicalistas para a resistência. A visão de que Goulart preparava um golpe foi todo um discurso montado para justificar o injustificável”, enfatiza.