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Governos têm que oferecer soluções efetivas, ou caos pode se instalar

População mais pobre, que é a maioria, é a que mais sofre e se revolta com o descaso

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A explosão de violência no Brasil, com ônibus queimados com maior frequência em diversas cidades, por exemplo, sinaliza que os ânimos estão mais exaltados e a população menos conivente com os desmandos do serviço público. Enquanto os protestos de junho foram ligados principalmente à classe média e jovens universitários, as últimas revoltas são relacionadas às camadas mais pobres, por diferentes motivações. Para especialistas, é preciso que se adotem respostas efetivas, ou a situação pode tomar proporções perigosas. As autoridades, que deveriam dar o exemplo, seguem dando mais sinais de descaso, provocando reações de raiva principalmente nos mais carentes. O transporte público tem aparecido como um símbolo dessa indignação. No Brasil, a grande maioria dos jovens brasileiros pertence às classes D e E. 

Paulo Baía, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alerta que a população mais pobre, que é a que mais depende do transporte público, é a ponta frágil da cadeia e a que mais sofre e se revolta com o descaso. De acordo com dados do IBGE da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, com dados de 2012, dos cerca de 200 milhões de habitantes do país, 17 milhões têm mais de 65 anos, ou 8,5% do total, sobram 183 milhões. Destes, 26% (48 milhões) têm entre 40 e 60 anos e 33,8% entre 20 e 40 anos. Grande parte destes não tem estudos, nem vão ter, e são das classes D e E. De 15,8 milhões de jovens entre 20 e 24 anos, 93,6% (14,8 milhões) possuem faixas de renda de até três salários mínimos.

O IBGE não possui números por classe social, mas por faixa de rendimento. Dos 168,6 milhões de brasileiros de 10 anos ou mais de idade, 85,6% têm uma faixa de rendimento mensal de até três salários mínimos. Em relação à escolaridade, 49,3% dos maiores de 25 anos não concluíram o ensino fundamental, ainda segundo o IBGE. Enquanto 11,3% tinham pelo menos curso superior de graduação completo.

O grande inimigo da população pobre, explica Paulo Baía, é o transporte público, já que ela é totalmente dependente dele, e não pode pegar um táxi em situações de aperto como a classe média. Essas pessoas, em situações normais, costumam não apoiar protestos, já que se criou um antipatia com quem participa desses movimentos com objetivo político. "Todos são contra o ato", mas quando se deparam com graves manifestações de descaso na oferta do serviço, vem a "explosão do ódio", o que tem acontecido com mais frequência, como os ataques a trens no Rio de Janeiro, destaca. 

"O prefeito pediu para as pessoas não saírem de carro. Se isso acontece em Nova York ou em Paris, funciona. No Rio, você quer pegar transporte público e não consegue, ao mesmo tempo, não dá para pegar o particular. Então a classe média começa a ser afetada pelo transporte público. O governo tem que agir em transporte de massa, que seja eficiente, confortável e com preços justos. [O investimento em infraestrutura] vai ser um segundo plano. No primeiro entra o transporte. É preciso que se tenha transporte público decente, e que a população não tenha que sofrer dentro dele. O transporte público é o calcanhar de Aquiles de toda a sociedade brasileira", alertou Baía em conversa com o JB por telefone. Apesar de tudo, o professor acredita que essas revoltas podem sensibilizar os governos a melhorar o serviço. 

Nem todos os ataques ao transporte público são relacionados à revolta popular com o governo, vale lembrar. Como destaca Marcus Ianoni, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, esses incêndios mais frequentes em ônibus são novos e suas causas ainda estão sendo avaliadas. Inclusive, uma hipótese é que parte deles são incêndios criminosos, como o do Maranhão e alguns em São Paulo. Não são incêndios organizados por movimentos sociais ou de usuários, acredita, embora os serviços de transportes, de um modo geral, não sejam satisfatórios. 

Os casos relacionados por Ianoni, para ele, têm relação com a segurança pública, com ordens vindas de facções criminosas que atuam dentro dos presídios e com conflitos entre crime organizado e policiais militares. Em São Paulo e Maranhão, o Ministério Público e outros órgãos públicos procuram entender e responder ao problema. Ianoni lembra que o governo federal implementou uma política nacional de segurança pública, mas que a inteligência nessa área precisa evoluir, assim como os serviços sociais aos quais a cidadania tem direito.

"A violência, que é tão antiga quanto a humanidade, está se alastrando em várias partes, não só no Brasil. Não me parece que sejam incêndios meramente associados à insatisfação dos usuários. Por outro lado, esses acontecimentos colocam na ordem do dia, mais uma vez, a efetividade da segurança pública, as condições dos presos no interior dos presídios, assim, como, obviamente, a qualidade dos serviços públicos de transportes", alertou.

Fernando Gabeira, ressaltou em entrevista à CBN nesta segunda-feira (03/02) que o Brasil vive delicada situação de violência. Na semana passada, contou, chegou de Alagoas onde tentava entender o motivo da fama de Maceió de ser a cidade mais violenta do Brasil e uma das cinco mais violentas do mundo. Abordou os mais de 30 ônibus incendiados em São Paulo, os conflitos na Amazônia e no Maranhão, o aumento da violência no Distrito Federal e a possível operação tartaruga dos funcionários da segurança, "tudo isso num momento pré-Copa e pré-eleição".

Gabeira atribuiu esse cenário ao fim das mediações políticas. Ele acredita que o mundo político se fechou em seu universo particular e passou a lançar mensagens burocráticas para a população, sem exatamente ouvir o que se passa nas ruas - o que vem transformando o Brasil em um espaço onde tudo culmina em um ato de violência. "Não acho que [isso] deve repercutir apenas como uma discussão sobre segurança. É uma discussão muito mais ampla do que isso. A própria cultura da paz é que precisa de uma certa maneira ser difundida e colocada em cena. (...) É um problema crescente que explode aqui e ali".

O que mais impressionou Gabeira em Maceió foi a entrada do crack, que teve um impacto muito grande na cidade, e que não seria tão negativo se não houvesse tanta vulnerabilidade, reconhecida pelas autoridades, com crescimento econômico baixo, cultura de violência política, e outros fatores que contribuem para o cenário. "São áreas vulneráveis onde o crack vai crescendo porque a garotada não tem oportunidades econômicas, não têm saída."

Episódios de violência como têm explodido pelo país não eram novidade em estados como Rio e São Paulo, mas a proporção e frequência com que vêm acontecendo é, como explica Paulo Baía. Desde o início do ano, São Paulo já registrou mais de 30 casos de ônibus incendiados. O Rio de Janeiro, inclusive, já tem experiência no assunto, com ação preventiva das empresas de ônibus, câmeras de segurança, vigias nos pontos de ônibus e preparação dos motoristas. Cidades do Sul, todavia, começam a lidar com esses problemas agora. Na última quinta-feira (30/01), a região metropolitana de Recife registrou seu primeiro caso de ônibus incendiado por questões ligadas ao crime organizado.

"O que está acontecendo agora é que isso está ganhando uma dimensão em outros lugares, com alguma coisa em Santa Catarina, Recife, Salvador também. [Essa reação] não é algo novo, é algo muito antigo, ligado á injustiça, às vezes manipulado por grupos armados, que levam a população a reagir. O símbolo de queimar ônibus, o transporte coletivo, generaliza-se em São Paulo, Rio de Janeiro, mesmo sob controle. No Paraná, esse tipo de crime está ligado a moradores muito pobres e com parentes no sistema penitenciário", comenta Baía.

Baía reforça que existe uma diferença entre a revolta instantânea, causada pela morte de um inocente por exemplo, ou de alguém do tráfico, e a revolta motivada pelo mal serviço. Resgatando um pouco de sua pesquisa dos anos 1980, diz que o transporte público é identificado como um sistema que explora, cobra caro, presta mal serviço e está vinculado à corrupção. A chave para todo o problema, então, é justamente o transporte público. 

"O ônibus passa a ser um símbolo das pessoas extravasarem sua catarse, é uma revolta tópica, que tem aumentado muito em dimensão territorial. Os ônibus queimam em função da morte de alguém, nas grandes manifestações da classe média também, mas pelas mãos de criminosos ou anarquistas. O ônibus queimado não caracterizou as manifestações. Mas tem essa questão que o Rio tratou na década de 1980 e 1990. Nós tivemos muitos ônibus queimados no Rio e em São Paulo, por favelados, para manifestar uma revolta, mas não com objetivos sociais ou políticos. Mas isso gera mais violência, repressão maior da polícia, acaba atraindo mais violência policial para onde eles estão reclamando de violência policial."