ASSINE
search button

Para Ives Gandra, José Dirceu foi condenado sem provas

À 'Folha de S. Paulo', jurista fala da teoria do 'domínio do fato', já  citada pelo 'JB'

Compartilhar

Em entrevista à jornalista Mônica Bergamo da Folha de S. Paulo, neste domingo, o renomado jurista Ives Gandra afirma que o ex-ministro José Dirceu foi condenado sem provas. De acordo com ele, a teoria do domínio do fato foi adotada de forma inédita pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para condená-lo. Ainda de acordo com Gandra, essa adoção traz uma insegurança jurídica "monumental", já que permite que, a partir de agora, mesmo um inocente pode ser condenado com base apenas em presunções e indícios.

O jurista alerta que o julgamento do mensalão pode ser ruim e perigoso pois a corte teria abandonado o princípio fundamental de que a dúvida deve sempre favorecer o réu.

Na entrevista, Gandra destaca que o mensalão "abriu uma janela em um ambiente fechado para entrar o ar novo, em um novo país em que haveria a punição dos que praticam crimes", afirmando que este lado é "indiscutivelmente positivo". Contudo, o jurista frisa que, do ponto de vista jurídico, não aceita a teoria do domínio do fato. E explica que esta teoria trabalha com indícios e presunções. "Eu não busco a verdade material. Você tem pessoas que trabalham com você. Uma delas comete um crime e o atribui a você. E você não sabe de nada. Não há nenhuma prova senão o depoimento dela -e basta um só depoimento. Como você é a chefe dela, pela teoria do domínio do fato, está condenada, você deveria saber. Todos os executivos brasileiros correm agora esse risco. É uma insegurança jurídica monumental. (...)  A teoria que sempre prevaleceu no Supremo foi a do "in dubio pro reo" [a dúvida favorece o réu]."

Gandra destaca que o domínio do fato "é novidade absoluta no Supremo". "Nunca houve essa teoria. Foi inventada, tiraram de um autor alemão, mas também na Alemanha ela não é aplicada", afirma, acrescentando que foi com base nela que que condenaram José Dirceu como chefe de quadrilha [do mensalão]. 

Este autor alemão é Claus Roxin, citado em coluna de Mauro Santayana no Jornal do Brasil em novembro de 2012, exatamente no contexto do julgamento do mensalão. Santayana falava em seu artigo que "o domínio do fato, em nome do qual incriminaram Dirceu, necessita, de acordo com o formulador da teoria, de provas concretas."

>> Veja aqui a coluna de Mauro Santayana no JB

Ives Gandra explica na entrevista à Folha de S. Paulo que não há a possibilidade de convivência entre o domínio do fato e o "in dubio pro reo". Ele acrescenta que leu todo o processo sobre o José Dirceu, e que não há provas contra ele. "Nos embargos infringentes, o Dirceu dificilmente vai ser condenado pelo crime de quadrilha."

Gandra salienta ainda na entrevista à Folha de S. Paulo que a teoria do "in dubio pro reo", num regime democrático, evita muitas injustiças diante do poder. "A Constituição assegura a ampla defesa -ampla é adjetivo de uma densidade impressionante. Todos pensam que o processo penal é a defesa da sociedade. Não. Ele objetiva fundamentalmente a defesa do acusado." O jurista alerta ainda que é preciso ter no processo democrático o direito do acusado de se defender. "Ou a sociedade faria justiça pelas próprias mãos."

Gandra teceu comentários também sobre o clamor popular e a pressão sobre o Supremo. Ele afirmou que o ministro Marco Aurélio Mello deu a entender, no voto dele contra os embargos infringentes, que houve essa pressão. "Mas o próprio Marco Aurélio nunca deu atenção à mídia. O [ministro] Gilmar Mendes nunca deu atenção à mídia, sempre votou como quis."

O jurista prosseguiu afirmando que estes ministros estão, "na verdade, preocupados com a reação da sociedade". Gandra explica que discute pela primeira vez no Brasil, em profundidade, se os políticos desonestos devem ou não ser punidos. "O fato de ter juntado 40 réus e se transformado num caso político tornou o julgamento paradigmático: vamos ou não entrar em uma nova era? E o Supremo sentiu o peso da decisão. Tudo isso influenciou para a adoção da teoria do domínio do fato."

Para o jurista, Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes deram ao julgamento uma conotação política. "Os tribunais do mundo inteiro são cortes políticas também, no sentido de manter a estabilidade das instituições. A função da Suprema Corte é menos fazer justiça e mais dar essa estabilidade. Todos os ministros têm suas posições, políticas inclusive."

Para o jurista, o ministro Ricardo Lewandowski acabou sacrificado. "Na comunidade jurídica, continua bem visto, como um homem com a coragem de ter enfrentado tudo sozinho." Gandra também falou sobre o presidente do STF, Joaquim Barbosa, afirmando se tratar de um homem extremamente culto e que, no tribunal "é duro e às vezes indelicado com os colegas." 

Gandra também falou sobre a nova composição do STF, lembrando que, na era Lula, nove se aposentaram e foram substituídos. "A mudança foi rápida. O Supremo tinha uma tradição que era seguida. Agora, são 11 unidades decidindo individualmente." Para ele, foi quebrada a tradição de por exemplo, nunca invadir as competências de outro poder. "O STF virou um legislador ativo. Pelo artigo 49, inciso 11, da Constituição, o Congresso pode anular decisões do Supremo. E, se houver um conflito entre os poderes, o Congresso pode chamar as Forças Armadas. É um risco que tem que ser evitado. Pela tradição, num julgamento como o do mensalão, eles julgariam em função do "in dubio pro reo". Pode ser que reflua e que o Supremo volte a ser como era antigamente. É possível que, para outros [julgamentos], voltem a adotar a teoria do "in dubio pro reo"."