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STF começa a julgar cotas raciais nas universidades com voto a favor do relator 

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A constitucionalidade da reserva de cotas para ingresso nas universidades, com base em critérios étnico-raciais começou a ser julgada nesta quarta-feira pelo Supremo Tribunal Federal, e já conta com o voto favorável do ministro-relator Ricardo Lewandowski. A longa sessão foi suspensa no início da noite,e será retomada nesta quinta-feira.

Em julgamento a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 186), ajuizada em 2009 pelo DEM, tendo como alvo o sistema de cotas raciais da Universidade de Brasília, em vigor desde 2006. O primeiro e até hoje único ministro negro do STF, Joaquim Barbosa — que será o sexto a votar — fez várias observações em apoio ao voto do relator. Numa delas, citou o presidente Barack Obama como o maior exemplo do sucesso da política de cotas para negros instituída, nos Estados Unidos, há 50 anos.

Voto do relator

O ministro Lewandowski iniciou o seu voto de quase duas horas, lembrando que o STF já admitiu, em diversas ocasiões, as ações afirmativas, na linha de que “a transformação do direito à isonomia e à igualdade de oportunidades, sobretudo em se tratando de participação equitativa nos bens sociais, somente é alcançada por meio da justiça distributiva, realocando os bens e oportunidades em benefício da coletividade como um todo”.

“O que se questiona basicamente é a metodologia da reserva de vagas, que busca reverter o quadro de desigualdades pretensamente isonômico que caracteriza o quadro atual. O critério de acesso deve levar em conta os objetivos do preâmbulo da CF, que instituiu ‘um Estado democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social’” — ressaltou o ministro.

Assim, ainda segundo ele, é “essencial equilibrar os critérios de seleção à universidade para se dar concreção aos objetivos maiores da Constituição”, já que o princípio da igualdade “não pode ser aplicado abstratamente quando é preciso atender aos excluídos”.

Lewandowski afastou o “conceito biológico de raça”, mas defendeu o que chamou de “discriminação positiva”, destacando que não se pode desconsiderar “o reduzido número de negros ou pardos que exercem cargos de relevo” no país, em conseqüência da “discriminação camuflada ou implícita ainda existente à sombra de um Estado complacente”.

O relator — ao rejeitar a ação proposta pelo DEM — afastou também o argumento de que a “autoidentificação” do candidato a se beneficiar da cota racial seria inconstitucional. A seu ver, a “identificação por terceiros” poderia gerar mais problemas do que a empregada pela universidade que, no entanto, continuaria a ter o poder de “referendar” a “autoidentificação”.

Na conclusão do seu voto, Lewandowski sublinhou que o sistema de cotas adotado pela UnB respeita os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, é “transitório”, e prevê “revisões periódicas” num prazo de 10 anos.

Sustentações

No início da sessão plenária, logo depois da leitura do relatório do ministro Lewandowski, fizeram sustentações orais as partes diretamente envolvidas na argüição de descumprimento de preceito fundamental.

A advogada do DEM, Roberta Kaufmann, disse inicialmente que “não queremos um estado racializado, mas sim discutir qual é a melhor forma de se integrar a população negra no Brasil de hoje”. Segundo ela, as “cotas de corte exclusivamente racial foram criadas nos EUA, na Áfricado Sul e em Ruiana, em face da discriminação institucionalizada”, o que não ocorre do Brasil, onde existiria, apenas, “uma certa discriminação social”. No caso específico da UnB, a advogada do DEM criticou os “tribunais secretos” que decidem quem é ou não é negro para fins de cota, citando o exemplo de gêmeos univitelinos que tiveram tratamento diferenciado naquela universidade. Um entrou na cota, o outro não.

Em defesa da UnB falou a advogada Indira Quaresma. Ela — que é negra — afirmou que ser negro no Brasil ainda é motivo para ser alijado das melhores oportunidades no país, onde “não existe democracia racial”. Acrescentou que “não enfrentar a questão tem sido uma das razões do fracasso de uma política de integração do negro na sociedade”, e que as cotas nas universidades “combatem esse tipo de racismo silencioso que pode ser constatado quando se verifica a ausência de negros em atividades e postos de destaque na sociedade”.

“A comunidade negra precisa urgentemente de personalidades emblemáticas. O negro só tem ascensão social forte no futebol, na música e no narcotráfico”, concluiu.

Em nome do governo federal, o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, reforçou o parecer já constante dos autos ao afirmar que as políticas afirmativas referentes aos afrodescendentes não se baseiam em “discriminação biológica”, mas constituem uma questão eminentemente cultural. Citou que os princípios constitucionais e legais relativos à igualdade racial incluem a “integração de todos os brasileiros”, tanto que existe no Executivo.

A vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, lembrou que a Constituição de 1988 já trata de ações afirmativas com relação a mulheres (mercado de trabalho) e deficientes (acesso a empregos públicos). Assim, seria preciso estender o princípio constitucional da igualdade a certas situações em que sejam necessárias políticas de ação afirmativa, “para superação de desigualdades profundamente entrincheiradas nas nossas práticas sociais e instituições”.  A seu ver, não pode ter uma leitura dissociada da realidade e do “mito da democracia racial” o inciso 5º do artigo 208 da Constituição, segundo o qual o dever do Estado com a educação deve ser efetivado mediante “acesso aos níveis mais elevados do ensino segundo a capacidade de cada um”.

Amigos da Corte”

Ainda na parte das sustentações orais, fizeram uso da palavra, em breves pronunciamentos, com tempo dividido, nove representantes de entidades diretamente interessadas na questão (“amici curiae”).

A favor da ação do DEM falaram Juliana Ferreira Correa (Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro) — para quem o sistema de cotas da UnB é também “racista”, por negar a “etnia mestiça”, beneficiando apenas os negros (afrodescendentes) — e Wanda Maria Gomes Siqueira, do Instituto de Deireito Público e Defesa Comunitária Popular (Idep).

Em defesa do sistema de cotas para estudantes negros fizeram sustentações orais: o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante; o Defensor Público-Geral da União, Haman Tabosa Córdova; Édio Silva Jr., da Conectas; Humberto Adami Santos Junior, do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental; Sílvio Cerqueira, do Movimento Negro Unificado;  Thiago Lopes, da ONG Educação e Cidadania; e Márcio Thomaz Bastos, representando a Associação Nacional dos Advogados Afrodescendentes.

O ex-ministro da Justiça considerou o julgamento “histórico”, e disse esperar que o STF continuasse a “cumprir o dever precípuo de velar pela Constituição” em temas de grande impacto social, como fez com relação aos direitos dos homoafetivos, à descriminalização do aborto de fetos anenecéfalos e à questão das células-tronco.

Outras ações

Na retomada do julgamento, nesta quinta-feira, deverão ainda ser apreciados dois feitos: um recurso extraordinário proposto contra as cotas para egressos do ensino público estabelecida pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, também da relatoria do ministro Ricardo Lewandwski, e uma ação de inconstitucionalidade (Adin 3330) da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenem) contra o programa Universidade Para Todos (Prouni), criado pela Medida Provisória 213/04, convertida na Lei 11.096/2005.

O Prouni dá tratamento diferenciado a negros, indígenas, deficientes físicos e egressos de escolas públicas na concessão de bolsas de estudo. Ayres Britto — que é relator da Adin 3330 — votou a favor da validade do Prouni quando do início do julgamento da ação, em 2008. Naquela ocasião, o ministro Joaquim Barbosa pediu vista.