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Tancredo: o estadista que fez o país chorar

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Jornal do Brasil

BRASÍLIA - O centenário de nascimento de Tancredo Neves levou a Brasília quarta-feira a cúpula do poder, das três esferas, para lembrar a figura de um do grande político que lutou pela redemocratização do país, cuja trajetória o levou a ser escolhido como chefe-da-nação. Tancredo morreu em 21 de abril de 1985 vítima de problemas de saúde, e foi substituído pelo vice, José Sarney, nomeado presidente.

Quarta-feira, em sessão solene no Congresso, Sarney, agora presidente do Senado, foi um dos líderes presentes que evidenciaram o papel de Tancredo.

Há homens que dão a vida por um país: Tancredo deu mais, ele deu a morte discursou José Sarney, que também narrou detalhes da transição.

Sarney lembrou uma fala de Tancredo, já no leito de morte, com seus médicos:

Eu peço, pelo amor de Deus: me deixem até amanhã e depois de amanhã façam de mim o que vocês quiserem. Mas eu tenho uma obrigação. É um compromisso que eu tenho. Eu sei, de fonte fidedigna, que o Figueiredo não dá posse ao Sarney reproduziu.

Políticos de vários partidos prestaram homenagem. Eles ressaltaram o papel do político mineiro na redemocratização do país e na construção da Nova República, após 21 anos de ditadura militar.

Além do presidente do Senado, José Sarney, e do presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, discursaram, entre outros, os governadores de São Paulo, José Serra, e de Minas Gerais, Aécio Neves neto de Tancredo. Serra atribuiu a Tancredo o grande período de estabilidade e a consolidação da democracia, posteriores ao regime militar. Aécio disse que ele amava o diálogo e o Parlamento. Depois da sessão, Aécio desabafou, emocionado:

Foi uma trajetória do homem público que inspirou outras gerações, inclusive a minha. É muito bom, lava a nossa alma, alegra o nosso coração você ver que, depois de tanto tempo da morte de Tancredo, 25 anos, ainda há um sentimento forte da nação, de reverência e de reconhecimento pelo seu esforço.

O senador Francisco Dornelles (PP-RJ) lembrou a participação de Tancredo em episódios de crise política: em 1954, como ministro da Justiça de Getúlio Vargas, Tancredo se ofereceu para assumir o então Ministério da Guerra, prender os militares rebelados que pregavam o golpe e comandar a resistência democrática. Sete anos depois, Tancredo rejeitou o confronto proposto pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, na campanha da legalidade, e conduziu a negociação que permitiu a chegada de João Goulart à Presidência.

As homenagens foram diversas. Em mensagem, o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, frisou:

Tancredo foi um desses homens que marcam pela conduta ética, conhecimento, capacidade de trabalho e, acima de tudo, brilho político. Sua consistente trajetória na vida pública foi delineada pela mineirice , um estilo próprio de conduzir com muita habilidade cada ação.

O mais completo homem público que conheci

Villas-Bôas Corrêa, colunista do JB

Poucos dias antes do dia da posse de Tancredo Neves na presidência da República, passei uma manhã conversando, na ampla varanda do edifício na Avenida Atlântica, com o mais completo homem público que conheci em 60 anos na militância como repórter político.

À vontade, como se estivesse levantado da cama, Tancredo ainda de pijama, com o robe desbotado, chinelos nos pés descalços, deu ao foca uma aula que nunca esqueci. Propus o tema em que embatucara: durante a campanha, numa dos achados perfeitos, como setas no coração do povo, Tancredo lançou o apelo de não vamos nos dispersar , complementado pelo é proibido gastar , como o brado de convocação contra a espiral inflacionária que disparava rumo ao infinito. O que me parecia contraditório era o apelo à poupança com o inchaço do ministério que estava quase concluído com generosa distribuição de pastas aos aliados recolhidos em dias e madrugadas de articulações.

A resposta estava na ponta da língua: o ministério da posse que não houve era para garantir sólida maioria na Assembléia Constituinte que 1987, que elaborou a Constituição promulgada pelo presidente José Sarney em 5 de outubro de 1988.

Mas nossas relações cultivadas na Câmara e no Senado eram mais antigas. E passaram pelas muitas etapas de uma vida dedicada ao interesse do país. Cutuco a memória para selecionar alguns flagrantes. No lançamento do matutino O Dia de Chagas Freitas fui o número um da lista dos contratados para a dobradinha como repórter de A Notícia. E para atender ao jornal popular do editor, Santa Cruz Lima, criei os Comandos Parlamentares de A Noticia e O Dia.

Tancredo Neves era ministro da Justiça quando recebi, por telefone, em voz abafada, a denúncia das violências, de surras com porretes e outras torturas de um recolhimento de menores do Serviço de Assistência aos Menores numa rua no Méier. Não hesitei em telefonar para o ministro e convidá-lo a visita à noite de surpresa no covil do SAM. Tancredo não hesitou. Marcamos para o dia seguinte a visita que saiu do Ministério da Justiça, com cobertura dos militares lotados no gabinete.

Chegamos por volta da meia-noite. O casarão do SAM com o portão trancado por cadeado. O ministro mandou arrombar e entramos. A impressão era deprimente. Camas sujas, algumas sem lençol, como meninas empilhadas como sacos. Um ar de desmazelo, de bagunça e falta de asseio. Mas, nenhum sinal aparente de violência. Enquanto o ministro conversava com a diretora despertada por telefone, aproximei-se de um grupo de internas e, em sussurro, confessei o meu desapontamento: nenhuma evidência de pancadas. Falando baixinho, a interna deu a dica: disfarce e levante o colchão da cama da inspetora ali no canto. Avisei ao fotografo Achilles Camacho: havia dezenas de porretes, com as marcas de sangue, de cabelos, de pedaços de roupas, a confirmação.

O ministro Tancredo Neves mandou fechar a arapuca no dia seguinte para reforma, abriu sindicância para punir as culpadas.

Alonguei estas lembranças pessoais para tentar revelar episódios esquecidos. Muito mais teria para contar. Na campanha para governador de Minas, acompanhei o candidato Tancredo num giro pelo Triângulo Mineiro e em três matérias de primeira página ousei antecipar a sua vitória. E recebi do candidato a reprimenda amistosa pelo risco de uma reviravolta em campanha que dividia o eleitorado.

Nunca entendi a série de erros no martírio das operações antes da posse que não houve. Eleito presidente, com um problema intestinal crônico. Na véspera almocei com os amigos e compadre José Aparecido de Oliveira, Carlos Castello Branco e dona Antonia, secretária de absoluta confiança de Tancredo. Castello surpreendeu-nos com a informação de que o diretor do JB, Nascimento Brito, passara a informação que Tancredo teria que ser operado de diverticulite. Depois de cinco operações em meio à bagunça da sala invadida por políticos e curiosos, o presidente Tancredo Neves morreu antes de tomar posse. E mudou o curso da História.

Ele foi o catalisador das esperanças

Silvio Tendler, cineasta

O processo de redemocratização do Brasil, após 21 anos de ditadura militar (1964-1985), teve como artífice fundamental a figura de Tancredo Neves, que quinta-feira completaria 100 anos de nascimento. Tancredo, com sua extraordinária habilidade política, conseguiu, em 1985, agregar todas as tendências conflitantes da esquerda e da direita, mostrando que a transição democrática era possível, e passava pelo entendimento e não pelo derramamento de sangue. Ele formou uma frente com todos os elementos políticos que lutavam contra a ditadura nos conduzindo à Assembléia Constituinte, que promulgou a constituição cidadã de 1988, e à eleição direta para presidente da República, na qual fui votar pela primeira vez em 1989, aos 39 anos.

Nós nunca fomos íntimos, mas o conheci quando fui entrevistá-lo para o documentário Os anos JK. Três anos depois, no dia do lançamento do filme, ele esteve presente e protagonizou uma cena interessante, que atestava seu bom humor e sua perspicácia. Ele estava tomando um uísque, e quando a imprensa veio para nos fotografar, ele colocou o copo pra trás e disse: É melhor esconder isto, se não amanhã vão dizer que estávamos todos bêbados . Mais tarde, participei ativamente da campanha Muda Brasil, tendo Tancredo como agente catalisador das esperanças de redemocratização.

Lembro que na mesma semana em que o filme foi lançado, uma carta-bomba foi colocada na sede da OAB, causando a morte da funcionária Lyda Monteiro. Na ocasião, o Jornal do Brasil estampou na primeira página: Veja Os anos JK, uma lição de democracia . Desde então, passei a militar como cineasta para que a redemocratização do país acontecesse. Logo em seguida, em 1984, lancei o documentário Jango, para mostrar que o Brasil precisava retornar à democracia, sem deixar de lado a justiça social.

Hoje, após ter recebido um convite do jornalista Roberto D'Ávila, me sinto muito feliz e honrado em estar dirigindo o documentário Tancredo - A travessia, que está intimamente ligado aos filmes anteriores e constitui uma espécie de tributo àquele que se empenhou desde início da ditadura para que a democracia fosse restaurada. Para se ter uma idéia, Tancredo foi o único membro do PSD que não votou no marechal Castelo Branco no pleito presidencial de 1964. Pretendo lançá-lo em abril. Só faltam as filmagens das comemorações de seu centenário de nascimento em São João Del Rey (MG) onde iniciou a carreira política.

O destaque no cenário político de Minas o conduziu, em 1950, à Câmara Federal, onde impressionou Getúlio Vargas, que logo o convidou a assumir o Ministério da Justiça, em 1953. Durante a grave crise política que culminou com o suicídio de Getúlio no ano seguinte, Tancredo foi um dos poucos que se manteve fiel a ele. Assim, ele passou a ser respeitado pelo PTB, pelos militares e pelo PSD, que o nomeou como conciliador quando Jânio Quadros renunciou à presidência, em 1961. Na ocasião, ele conseguiu convencer os militares a voltarem para os quartéis e Jango a aceitar o parlamentarismo, evitando uma guerra civil. É neste momento que ele ganhou notoriedade como um político conciliador. E este perfil é que o levou a se tornar uma alternativa para a abertura política. Em 2010, ano que marca seu centenário de nascimento e os 25 anos de morte, fica a reflexão sobre a ética e a coerência que nortearam a vida deste político acima de tudo, um homem de paz.

No poder, a arte de negociar

Luciana Abade

A habilidade política de Tancredo Neves durante o turbulento período que marcou o fim da ditadura militar e o processo de redemocratização do Brasil é exaltada nesse centenário pelos cientistas políticos, que creditam ao político mineiro o sucesso do processo reconhecido em todo o mundo. Os cientistas, contudo, destacam que muito antes de se tornar candidato à Presidência, Tancredo deu um show de superação política.

Tancredo saiu derrotado das eleições para governador de Minas Gerais em 60 e, 11 meses depois, sacudiu a poeira e deu a volta por cima ao evitar uma guerra civil e ainda se tornar o primeiro ministro do Brasil ressalta o cientista político da Univesidades de Brasília, David Fleischer, ao lembrar o episódio em que Tancredo conseguiu empossar João Goulart como presidente, mas sem poder. Agradando, desta forma, aos que não queriam a posse de Goulart.

O coordenador do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social, Geraldo Tadeu, por sua vez, aponta a criação do Partido Popular como outra grande estratégia de Tancredo para criar uma alternativa de centro, liberal e democrática que evitou uma radicalização do regime militar .

Ele teve assento entre os militares, mas sempre manteve a coerência e nunca se deixou ser cooptado. Tancredo sempre foi um defensor do estado democrático de direito ressalta Tadeu.

O que fica de Tancredo é a figura capaz de negociar com forças de natureza e peso político diferentes sem abrir mão de suas convicções democráticas completa o coordenador de Pós Graduação em Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), Eurico Figueiredo.

Eurico, entretanto, lembra que até hoje Tancredo coleciona alguns críticos justamente por ter trabalhado o processo de redemocratização política de forma pacífica com os militares.

Para Rubens Figueiredo, da Universidade de São Paulo (USP), o processo pacífico de transição proporcionado por Tancredo é justamente um dos seus maiores legados:

A transição democrática brasileira é uma das mais eficientes que se tem notícias no mundo.

Apesar de destacarem o poder conciliador de Tancredo, poucos cientistas se arriscam imaginar como teria sido a atuação dele como presidente da República, caso ele não tivesse assumido a Presidência.

Leonardo Barreto, da Universidade de Brasília, acredita que o governo de Tancredo não deveria ter sido muito diferente do que foi o de José Sarney porque ele não tinha uma plataforma econômica para sua gestão.

Apesar das críticas è economia, Sarney cumpriu seu papel de entregar ao país uma eleição direta. Tancredo provavelmente teria feito o mesmo.

Muita gente acha que Tancredo não era um nome de jogadas ousadas. Talvez ele não tivesse lançado o Plano Cruzeiro afirma Fleischer.

Segundo Barreto, Tancredo teria tido um governo respaldado por um forte apoio popular. Principalmente porque foi ágil para evitar uma caça às bruxas