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Nem bala nem faca: mudar os afetos políticos

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Apelo a balas em nome dos homens de bem e do povo; esfaqueamento de candidato a mando de Deus. A vida política agoniza em praça pública. O crime cometido contra o candidato Jair Bolsonaro abre-nos uma bifurcação: intensificar a radicalização eleitoral e o discurso de guerra ou, então, tendo consciência do abismo à frente, sair do ciclo vicioso das agressões, assumindo uma energia emocional em que a política seja possível e a nação priorizada.

É verdade, a violência sempre foi uma constante da política. Ao longo da história, os extremos de direita e de esquerda consideraram a violência quase sempre como um modo legítimo de seu fazer. Chegou-se mesmo a teorizar, como o jurista nazista Carl Schmitt, que a essência do político é a oposição entre amigo e inimigo e se funda na guerra (quando não presente, latente). O século passado banhou-se em sangue em nome de “boas causas”, seja a “potência da nação” e a “raça pura”, seja a “revolução operária” e a “emancipação humana”. A perda das ilusões no fim do século nos ensinou que a política depende de uma pacificação social, por meio da qual os conflitos se tornam evidentes, encenados, negociados, dialogados e confrontados sem levarem à guerra civil (porque constitucionalizados), mas sem também serem suprimidos (porque próprios à vida democrática). Mesmo que vivamos desencantados com a capacidade das democracias lidarem com seus próprios problemas, ela continua sendo “a pior forma de governo possível, à exceção de todas as outras que foram experimentadas”, como disse Churchill.

Todavia, quando olhamos as partes em crescente confronto no Brasil desde 2013, vemos uma coleção de discursos que parecem regredir aos anos 1930. Do lado de certa esquerda, que é bem fechada em si mesma, escutamos os lugares comuns de sempre: declarações de ida às “ruas entrincheirados com armas na mão”, profecias de “banhos de sangue” e mesmo ameaças de “bons paredões, boas espingardas, boas balas, boas covas”; do lado de certa direita, cujo lastro se dissemina como pólvora pelo social, assistimos a uma lista de barbaridades, com defesas de tortura e de ditadura, com contabilidade de quem matou mais, com lamentos de baixo número de assassinatos e com uma ânsia persistente em “fuzilamentos” (desde FHC e “petralhas” até curadores de exposição). Quando tais discursos ressoam na mídia tendo um desapreço público, escutamos as desculpas comuns: uns dizem que se inspiram em poetas ou usam só idiossincrasias idiomáticas; outros, que se trata de “figuras de linguagem” ou de “coisas do momento”. O fato é que ambos apelam a agressões verbais e a incitações à violência e, quando pressionados, se dizem republicanos mal compreendidos e apontam o perigo para o lado oposto. Nesse teatro há as contradições de sempre: como democratas e defensores dos direitos humanos podem transigir com discursos de violência e com ditaduras alheias? Como religiosos podem defender um candidato com expressões constantes de desprezo à dignidade da pessoa humana e que dissemina agressões odiosas?

Mesmo supondo que são apenas bravatas políticas para provocar impactos e aplausos, as “forças de expressão” sempre podem encontrar indivíduos que passarão, com força, ao ato. Foi o que aconteceu, aparentemente, na última quinta-feira. Estando em um ambiente de disseminação de medo e de ressentimento generalizado, muitos de nós se tornam reféns fáceis de teorias conspiratórias e de soluções violentas. Até então, muito se disse e, fora alguns incidentes preocupantes, pouco se fez. Nesta semana, contudo, soa um alerta geral a todos os candidatos: estamos em risco de vendeta política.

Por isso é bom não brincar com fogo. Espera-se, do candidato, não apenas a melhora de sua saúde, mas uma mudança de postura (coisa difícil, dada sua recente foto com o gesto de sempre); espera-se, de todos, um repúdio generalizado à violência e um apelo à razoabilidade. Não é hora de se fazer uso político do ocorrido, e sim de fazer política com debate programático, com muita escuta e muito diálogo. Excetuadas algumas expressões infelizes, como a do presidente do PSL, Gustavo Bebianno, que declarou, inconsequentemente, “agora é guerra”, parece-nos que larga parte dos atores percebeu a gravidade da situação. Que a entendamos como uma oportunidade de opção por outros afetos, mais generosos e abertos, capazes de renovar as forças políticas e de restabelecer uma agenda de nação.

* Doutor em Sociologia (Iesp-Uerj) e diretor do Ateliê de Humanidades

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