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Faces da desigualdade brasileira

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A complexidade da questão da desigualdade econômica exige um debate mais amplo do que o usual, normalmente centrado na desigualdade da renda do trabalho. É preciso incorporar outras dimensões, como a injustiça tributária e previdenciária. No caso brasileiro, deveria ser levado em conta também o que chamaremos aqui de “desfrute do tempo livre”. Podemos ilustrar tais perspectivas a partir de uma simples “crônica”.
Suponhamos três brasileiros: Antônio, José e João. Antônio vive de rendas do capital. Sua família tem uma média empresa e ele, ao contrário dos irmãos, optou por não trabalhar. Como sócio-herdeiro, vive de uma retirada de R$ 20 mil (da mesma forma, seus irmãos desfrutam dessa retirada, mas também recebem um pró-labore, pois dão expediente na empresa todos os dias). Como provém da distribuição de lucros e dividendos, os R$ 20 mil que Antônio recebe não são sujeitos a tributação e ele vive desses rendimentos. Seu cotidiano é invejável: por sugestão de seu terapeuta, vai à praia todos os dias, para ocupar-se de algo que faz muito bem à saúde. Lá, aproveita para discutir política com amigos, sendo que o Bolsa Família é um dos alvos de críticas da turma politizada.
José é um bem-sucedido administrador de empresas. Tem experiência profissional e carreira construída que lhe proporcionam um salário bruto de R$ 26.387, o qual, aplicada a alíquota máxima atual (27,5%) e deduzida a parcela de R$ 869,36, resulta, em termos líquidos, nos mesmos R$ 20 mil mensais de Antônio. José trabalha pelo menos 12 horas por dia na empresa em que é gerente, e perde 3 horas por dia no trânsito, nos trajetos casa-trabalho-casa.
João, por sua vez, tem uma vida mais modesta. Trabalha como encarregado de TI em uma empresa de turismo na mais bela cidade do Brasil (também com extensa jornada diária de trabalho), e tem um salário bruto de R$ 4.700, certamente acima de cerca de 90% da população brasileira. Para ir e voltar do trabalho, gasta cerca de 4 horas por dia no transporte público. Com a aplicação da alíquota de 27,5% (a mesma que incide sobre o excelente salário de José) e a mesma parcela a deduzir, recebe R$ 4.277 (pouco mais de um quinto do que amealha Antônio).
O que vemos nesta crônica é uma face da desigualdade brasileira. Antônio e José estão dentro do estrato do 1% mais rico da população, mas, mesmo entre eles, há algumas diferenças importantes. Antônio tem todo seu tempo livre de preocupações com trabalho e desfruta de isenção tributária – embora reclame do Estado (notadamente quando concede benefícios – mesmo que modestamente – aos outros). José tem poder aquisitivo privilegiado, mas tem pouco tempo livre e, ainda por cima, deverá se aposentar em mais tempo do que havia planejado no início de sua carreira, caso a atual proposta de “reforma” da previdência seja aprovada no Congresso. José também é prejudicado pela caótica urbanização que caracteriza as maiores cidades brasileiras.
João obviamente não é pobre, mas tem pouquíssimo tempo livre, paga um imposto relativamente alto e vai ter que trabalhar muitas horas ainda, ao longo da vida, para poder se aposentar, recebendo provavelmente um valor menor do que o auferido na ativa.
As desigualdades descritas nesta crônica mostram a necessidade urgente de adoção de uma reforma tributária verdadeiramente progressiva e de uma reforma previdenciária que alivie a classe média e os mais necessitados, dando a eles uma perspectiva de vida mais igualitária em comparação com os que pouco ou nada trabalharam durante a vida (diferentemente das propostas recentes que vêm sendo oferecidas ao povo brasileiro). Também uma melhor política urbana seria importante para dotar a sociedade brasileira de melhores condições de vida. Além de elevada desigualdade de tempo de trabalho ao longo da vida, também existe, no Brasil, elevada desigualdade de desfrute do tempo livre no cotidiano dos brasileiros.

* Professor e pesquisador da Faculdade de Economia da UFF e pesquisador-visitante da Universidade de Columbia (Nova York)