ASSINE
search button

A cidade em retalhos: o voto distrital

Compartilhar

Recentemente, a Comissão de Constituição de Justiça do Senado Federal aprovou o Projeto de Lei do Senado (PLS) 25/2015, proposto pelo senador José Serra (PSDB-SP), que institui o voto distrital nos municípios com mais de 200 mil eleitores, que hoje somam 84, sendo 24 deles capitais. Eles contêm cerca de 40% do eleitorado brasileiro. Nessas cidades, quando nenhum candidato atinge o mínimo de metade mais um dos votos válidos, ocorre votação em dois turnos. O PLS foi encaminhado para a Câmara dos Deputados. Afinal, o que é voto distrital e como avaliá-lo criticamente?

Voto distrital é uma modalidade de sistema eleitoral majoritário. Sistema eleitoral é o mecanismo pelo qual os votos são convertidos em cadeiras parlamentares. No sistema majoritário, o mecanismo baseia-se na seguinte lógica: quem tem mais voto, conquista tudo que está sendo disputado. No Brasil, as cadeiras do Senado Federal e os três tipos de cargo executivo (presidente, governador e prefeito) são preenchidos pelo sistema majoritário. Quem recebe mais voto fica com a vaga em disputa. No caso do Senado, a disputa é alternada, em uma eleição, uma vaga está em jogo, na seguinte, duas. Por outro lado, as cadeiras para deputados (federal e estadual) são preenchidas, conforme determinação constitucional, pelo sistema proporcional. Nesse sistema, as vagas em disputa são distribuídas aos partidos políticos proporcionalmente à votação por eles obtida. Quem recebe dez por cento dos votos ocupa dez por cento das vagas e assim por diante. As cadeiras para o cargo de vereador também são preenchidas pelo critério proporcional, porém a Constituição não explicita essa necessidade. Diante dessa lacuna da Carta Magna, o referido PLS, que é uma matéria de teor infraconstitucional, está tentando incluir o sistema majoritário nas eleições legislativas municipais.

Voto distrital é a denominação que se dá no Brasil à proposta de instituir um sistema majoritário com uma cadeira em disputa em cada distrito. Em uma cidade com 30 vagas na Câmara Municipal, por exemplo, o Tribunal Regional Eleitoral dividiria o território em 30 distritos com número de eleitores igual ou quase igual e cada partido ou coligação apresentaria um candidato para concorrer à única vaga em disputa. 

Os que defendem essa proposta alegam, principalmente, que ela aproximaria os representantes dos representados. Não há nada mais necessário no país que uma reforma política para melhorar a representação democrática, mas o voto distrital tem três consequências negativas: afunila o sistema partidário, tendendo ao bipartidarismo, paroquializa o debate e personaliza ainda mais um sistema político já altamente personalista. É conhecida na ciência política a chamada Lei de Duverger, segundo a qual o sistema majoritário tende a afunilar o sistema partidário, conduzindo ao bipartidarismo (EUA, Reino Unido etc) ou algo próximo, como o sistema de dois partidos e meio (dois grandes e um médio), existente no Canadá. Na medida que os partidos grandes tenderiam a vencer as eleições distritais, a mecânica do voto distrital implicaria em uma forte tendência de enfraquecimento dos pequenos partidos e, ao mesmo tempo, de fortalecimento dos grandes partidos. Como o passar dos anos, as cadeiras da Câmara Municipal iriam sendo ocupadas por candidatos dos partidos maiores, até se chegar ao bipartidarismo ou algo muito próximo.

Por outro lado, o voto proporcional surgiu na Europa, na segunda metade do século XIX, como um questionamento a essa oligarquização do sistema partidário. A introdução do critério da proporcionalidade no sistema eleitoral foi uma das principais inovações institucionais da história dos regimes democráticos. Graças ao sistema proporcional, diversas minorias ou maiorias subrepresentadas puderam acessar o sistema representativo, superando a barreira imposta pelo tudo ou nada do voto majoritário. No Brasil, os legislativos, com exceção do Senado, são constituídos pelo método proporcional. O problema é que a lista é aberta, de modo que o foco da campanha eleitoral acaba sendo nos candidatos e a relação de representação adquire um inadequado caráter personalista. Voltarei a esse ponto.

Por sua vez, a paroquialização decorre da representação distritalizada. Hoje, nas eleições municipais, o distrito eleitoral é a cidade toda. Os eleitores votam nos candidatos registrados para as eleições da cidade, independentemente de onde uns e outros moram. Com o voto distrital, a cidade é retalhada em distritos menores, tantos quantos forem as cadeiras existentes na Câmara Municipal. Mas, se isso acontecesse, pode-se perguntar: quem mora no centro de uma grande cidade tem os mesmos interesses em relação a essa área municipal que quem lá trabalha? Como o eleitor que trabalha no centro, lá passando grande parte de seu dia, embora morando em outra localidade, poderia influir sobre as políticas públicas dessa zona? Se cada vez mais as políticas públicas das grandes cidades são pensadas de modo amplo, inclusive intermunicipalmente, como acontece nas regiões metropolitanas e outras áreas, que consequências positivas teria uma dinâmica política municipal baseada na divisão da cidade em retalhos? 

Quem se desloca cotidianamente por vários bairros do município, como os motoristas de ônibus, táxi e caminhões, por exemplo, tem seu interesse pela qualidade da cidade focado em sua estrita zona de moradia ou esse interesse é mais amplo? Os professores municipais pensam a educação na cidade como um problema distrital ou da totalidade citadina? Uma liderança do conjunto dessa categoria conseguiria ser eleita para a Câmara de Vereadores se houvesse a distritalização, sendo sua base de atuação sindical a cidade toda? O mesmo se aplica a outras lideranças de movimentos sociais, como o conjunto dos sindicalistas, estudantes, ambientalistas, militantes urbanistas etc. O território não é a única base que alavanca uma candidatura política. Essas bases podem também se assentar em trajetórias variadas, como os diversos tipos de associativismo (de classes e movimentos sociais), as bandeiras temáticas, de causas específicas (saúde, ambiente, religião, gênero, raça etc), a condição intelectual (professores, economistas, jornalistas etc).

Ademais, que tipo de políticos o voto distrital estimularia a existir, a não ser despachantes com o olhar fragmentado? E a que tipo de cidadão eleitor o voto distrital induziria? Se já há, na dinâmica da ordem social competitiva, uma tendência individualista, mesquinha, de se olhar para o próprio umbigo, quão esse comportamento não seria estimulado se o eleitor virasse uma espécie de cliente do representante distrital?

Como se não bastasse, ficaria muito mais fácil para o poder econômico local capturar os eleitos, direcionando recursos de campanha em alvos claramente delimitados. Por tudo isso, é fundamental que o conjunto do eleitorado, especialmente o do campo progressista, acompanhe a tramitação dessa matéria no Congresso Nacional. Note-se que atores-chave na promoção e sustentação da onda conjuntural conservadora estão defendendo o voto distrital ou outra modalidade de sistema majoritário, que também acabaria com os partidos e realçaria o personalismo: o distritão. 

A melhor alternativa para o sistema proporcional de lista partidária aberta, existente no Brasil, é a introdução de listas partidárias fechadas ou flexíveis, para que o eleitor passe a se relacionar com programas partidários, e não com políticos individuais. Muito dos problemas do sistema partidário brasileiro tem a ver com o caráter aberto da lista, e não com a proporcionalidade, que é altamente salutar. A lista aberta induz à fragmentação do comportamento partidário e à competição entre candidatos do mesmo partido.

Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia.