ASSINE
search button

Charles Lloyd comemora 75 anos com Hagar's song

Compartilhar

Em 1967, em Nova York - ainda nos meus twenties - ouvi ao vivo, pela primeira vez, o sax tenor hipnótico de Charles Lloyd, à frente daquele quarteto consagrado no LP Forest flower (Atlantic), no qual despontava um inquieto pianista de 21 anos chamado Keith Jarrett. A segunda vez foi em 1999, no Rio, no palco do Free Jazz Festival, onde ele tinha ao seu lado Billy Higgins (bateria), John Abercrombie (guitarra) e Marc Johnson (baixo). A terceira foi no ano passado, em São Paulo, no BMW Jazz Festival, com o quarteto que lidera de uns tempos para cá (Jason Moran, piano; Reuben Rogers, baixo; Eric Harland, bateria), muito bem captado pela ECM nos excepcionais álbuns Rabo de nube – gravado ao vivo na Basileia, em 2007 – e Mirror – registro em estúdio de dezembro de 2009.

Ao vivo ou em estúdio – sobretudo na série de 14 álbuns da ECM, a partir de Fish out of water (1989) – as litanias desse feiticeiro do saxofone são tão envolventes e cool como as de Lester Young, mas podem elevar-se em espirais cromáticas, dependendo do momento, a estertores sonoros à la John Coltrane. Porém, o som, o fraseado e a postura zen de Charles Lloyd são inconfundíveis. No palco ou no estúdio. Quando era o arquétipo do jazzman hippie, na década de 1960, ou agora, às vésperas do seu 75º aniversário (15 de março).

Para celebrar a data, o selo de Manfred Eicher vem de lançar o CD Hagar's song, gravado por Lloyd em abril do ano passado. Não se trata, no entanto, de mais um registro do já aclamado quarteto, mas de um duo – um diálogo muito íntimo com Jason Moran, que tem a metade da idade do “chefe”, embora seja tido como o pianista mais criativo surgido na cena jazzítica desde Brad Mehldau. Anteriormente, o saxofonista tinha gravado um único disco em duo: Which way is East, em janeiro de 2001, com Billy Higgins, meses antes da morte do icônico baterista.

Na apresentação de Hagar's song pela ECM lê-se: “O álbum contém peças especialmente caras a Lloyd, desde composições de Billy Strayhorn (Pretty girl), Duke Ellington (Mood indigo), George Gershwin (Bess, you is my woman) e Earl Hines (Rosetta) até um standard fortemente associado a Billie Holiday, a mais famosa balada de Brian Wilson para os Beach Boys (God only knows) e uma canção de Bob Dylan (I shall be released). A peça central do set é a suíte que dá título ao CD, composta por Lloyd, e dedicada à sua tataravó, que foi arrebatada de casa, no sul do Mississipi, quando tinha 10 anos, e vendida para um dono de escravos no Tennessee. 'Quando soube de sua história fiquei muito comovido', diz Lloyd. 'A suíte espelha as etapas de sua vida; perda da família, solidão e o desconhecido, sonhos, sofrimento, e canções para os filhos pequenos'”.

As cinco partes desta emotiva suíte ocupam 27m45 dos quase 70 minutos do disco: Journey up river (6m15), com a melodia sussurrada na flauta baixo; Dreams of white bluff (9m45), no sax tenor; Alone (2m30), com Lloyd na flauta alto e Moran no pandeiro; a excêntrica Bolivar blues (4m15), sax alto; Hagar's lullaby (5m40), sax tenor.

Mas o álbum é cativante desde as três primeiras faixas, em que o duo improvisa a partir de temas que estão na cabeça e no coração não só de Lloyd mas também de qualquer jazzófilo que se preze: Pretty girl (4m50) – ou Star crossed lovers, de Such sweet thunder, a suíte-magna de Duke Ellington-Billy Strayhorn – de rara melancolia, sublinhada pelo sopro volátil do sax tenor; Mood indigo (5m15), de Ellington, em tempo mais acelerado que o costumeiro, graças ao piano meio stride de Moran; Bess you is my woman now (3m35), de Gershwin, uma troca de afagos entre “Porgy” (Lloyd) e “Bess” (Moran).

A surpresa do disco fica por conta de Pictogram (3m55), peça de Lloyd, em que o saxofonista faz visível referência (e reverência) ao dialeto free de Ornette Coleman, por sobre as assimetrias harmônicas do jovem pianista, cada vez mais senhor de si e da arte do piano jazzístico.