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Diretora da Médico Sem Fronteiras no Brasil fala de sua experiência na África

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Nascida em Angola e criada em Portugal, a nova diretora-geral da Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Brasil, Ana de Lemos, lembra com tristeza a epidemia de ebola que atingiu Serra Leoa, Guiné e Libéria, em 2014. Segundo ela, a doença tem características de uma “peste”, pois devido à facilidade de contágio, familiares das vítimas não podem abraçar seus entes queridos contaminados. Antes de vir para o Rio de Janeiro, ela trabalhou na Libéria como funcionária da ONG. Também esteve no Zimbábue durante o surto de AIDS. Recentemente, novos casos de ebola surgiram na República Democrática do Congo, mas uma atuação rápida e eficiente fez com que a doença não se espalhasse. O ministério da Saúde do país deve anunciar na terça-feira que a epidemia foi controlada - caso nenhum novo caso surja nos próximos dois dias. Ana ressalta, no entanto, que a atuação da MSF vai além de operações em nações atingidas pelo ebola ou por guerras, como o Iraque, onde também trabalhou. A Médico Sem Fronteiras faz campanhas para combater doenças endêmicas, como malária e tuberculose, que matam muito mais do que o ebola, facilita a produção de vacinas a baixo custo e incentiva pesquisas, entre  outras missões.

Em abril, foram registrados casos de ebola na República Democrática do Congo. Houve um alerta de organizações de saúde e medo de nova epidemia. O que aconteceu no país e como foi a resposta à doença? 

A República Democrática do Congo (RDC) é onde temos o maior número de projetos e operações da Médicos Sem Fronteiras. É um país imenso e com uma guerra constante, praticamente há mais de 30 anos. Temos sempre posicionada uma equipe de emergência, porque as emergências são constantes. Há várias décadas respondemos a epidemias de ebola no mundo. A primeira foi no Congo, em 1976. Nesta epidemia recente, juntamente com o ministério da Saúde do Congo e a Organização Mundial da Saúde (OMS), respondemos desde o primeiro momento. A preocupação com epidemias de ebola pequenas é relativamente comum. Na epidemia de 2014, a doença se expandiu para centros urbanos numa zona que nunca tinha acontecido. Áreas onde havia um movimento grande de população. Agora, o que preocupava na província de Equateur, em RDC, é que a doença também tinha chegado a uma zona urbana. (Segundo a OMS, de 1º de abril a 3 de julho, 53 casos de ebola foram registrados na República Democrática do Congo, incluindo 29 mortes. O total inclui 38 casos confirmados laboratorialmente e 15 casos prováveis - pacientes considerados suspeitos para a doença, mas que morreram antes que a coleta de sangue fosse feita).

E qual a foi a diferença em relação ao que foi feito na epidemia anterior? 

Há uma grande diferença em relação à epidemia anterior: até então a MSF era uma das poucas instituições que respondia a epidemias do ebola. Mas depois da grande epidemia, nós mesmos e a OMS treinamos várias organizações e grupos de pessoas. Por isso, há muito mais gente capacitada para responder. A OMS lançou um alerta logo após os primeiros casos no Congo, porque houve uma falha deles na grande epidemia, mas agora chegaram imediatamente no país. O alerta criou uma atenção mundial e a resposta foi imediata, enquanto no caso anterior não foi, demorou vários meses para que se começasse a lidar com a epidemia.

O ebola está longe de ser uma das doenças que mais mata no mundo. A epidemia é superestimada? 

Publicamos um livro na MSF que se chama “A Epidemia do Medo”. O número de mortes na epidemia de 2014 e 2015 foi de 11 mil, com 30 mil pessoas afetadas. Só que o ebola contêm características de uma peste, não há cura, a mortalidade é de mais de 50%, o contágio por fluidos é altíssimo. As pessoas não podem tocar em alguém que está morrendo, nem que seja sua filha, sua mãe. Não podem dar um abraço em alguém que acabou de perder um filho, perdeu o seu bebê. Situação que lembra o  livro “A Peste”, de Albert Camus. Há um pânico de se contrair a doença. Trabalhei na epidemia de ebola em Monróvia, na Libéria. É bastante chocante, uma coisa invisível. Como organização médica fazemos parte de uma guerra contra uma coisa invisível, que não temos controle. Mas se formos comparar, só em 2016 nós tratamos dois milhões e quinhentos mil casos de malária. A tuberculose no mundo mata uma pessoa a cada 18 segundos. A epidemia de AIDS tem crescido avassaladoramente. O ebola não deve ser o único foco da OMS, e não é onde está a maioria de nosso trabalho. 

Quais são os outros focos de trabalho da MSF? 

Há doenças negligenciadas, que são normalmente as que afetam populações empobrecidas, vulneráveis, que são as que mais matam no mundo. São uma grande parte de nosso trabalho. Nós trabalhamos 30% em conflitos, mas mesmo nesses conflitos, as populações se tornam vulneráveis por causa da guerra. Por exemplo, enfermidades como sarampo e difteria, que tinham desaparecido da Síria. Agora temos que fazer, às vezes sob bombardeios, campanhas de vacinação, pois as pessoas começam a morrer de doenças que estavam extintas. Mas, realmente, o ebola chama muita atenção porque causa um pânico. Mas não é a grande causa de mortalidade e de sofrimento das populações mais vulneráveis ao redor do mundo. 

E como é a atuação da MSF em relação às outras doenças? 

É mais lenta do que gostaríamos. Muitas vezes não compensa economicamente para as companhias privadas fazer pesquisas sobre vacinas contra a malária, melhores medicamentos para a tuberculose. Os medicamentos para a hepatite C  custavam, há cerca de três anos, US$ 100 mil, doença que com tratamento é curável em quase 90% dos casos. Agora os preços estão reduzindo bastante, estamos felizes. Há cerca de quatro meses foi publicado um novo preço na América Latina, de US$ 600. Um dos principais focos da MSF é batalhar para que o acesso aos medicamentos seja universal. Há uma preocupação grande com os altos custos dos remédios e vacinas. 

Como foi sua experiência na Libéria durante a epidemia? 

Difícil. Primeiro, em função do pânico, havia um exercício pessoal de controlar o medo. Fui para Monróvia no pico da epidemia, existia, literalmente, pilhas de mortos. As escolas e lojas estavam fechadas, as crianças estavam proibidas de brincar na rua. O centro de tratamento que montamos era imenso, o maior já feito, tinha 600 camas. Era muito triste estar ali e ver que a maioria das pessoa iria morrer. Assistir mães vendo as mortes dos filhos sem poder lhes dar um abraço. Uma situação bastante dura. Na guerra também é duro, mas nós não somos partes daquilo. Somos os bons, entre aspas, não somos nenhuma parte do conflito. Estamos ali para tratar a população civil, fazer cirurgias, partos, vacinar, salvar vidas. No caso do ebola a guerra é nossa, é contra o vírus. 

Como é trabalhar na MSF? 

É um privilégio pode fazer algo pelas pessoas mais vulneráveis no mundo. No momento em que não há mais nenhuma organização, quando todo mundo foi embora e poder dar a mão a alguém. Além de ser um aprendizado de culturas e pessoas diferentes.