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O assédio, a paquera e os manifestos que sacudiram o universo feminino

Especialistas comentam repercussão de atos no Globo de Ouro e na França

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"Por muito tempo, as mulheres não têm sido ouvidas ou acreditadas quando ousam falar a verdade sob o poder desses homens. Mas esse tempo acabou", afirmou a apresentadora Oprah Winfrey ao receber o prêmio Cecil B. DeMille no Globo de Ouro no último domingo (7). Atrizes e atores usaram preto e um broche em apoio à campanha contra o assédio sexual e pela igualdade de gênero em Hollywood durante o evento. Dois dias depois, um manifesto publicado no Le Monde criticou os movimentos “Time’s Up” e “#MeToo”, e o que chamaram de “puritanismo” sexual. Uma centena de pessoas da França assinaram o documento, entre elas, Catherine Deneuve.

O manifesto francês surpreendeu, e foi acompanhado de declarações de personalidades do Brasil e do mundo que se posicionaram da mesma maneira. Para Flávia Biroli, professora de Ciência Política da UnB, contudo, movimentos contra o assédio não se tratam de puritanismo, como apontado pelas francesas, mas da "exigência de que as relações se modifiquem para que as mulheres sejam também sujeitos livres, em vez de objetos do exercício masculino da liberdade sexual".

"A atuação feminista sempre esbarrou nas dificuldades de levantar o véu dos hábitos e dos arranjos de poder vistos como naturais. Isso acontece quando se mostra que a sobrecarga das mulheres com o trabalho doméstico é injusta, por exemplo. É difícil porque a atual divisão do trabalho privilegia os homens, mas também porque homens e mulheres são socializados para assumir nela seus papeis e, assim, reproduzi-la. No caso da violência sexual, estamos também lidando com práticas que privilegiam os homens. Também nesse caso fomos, homens e mulheres, ensinados a aceitar e ocupar nossos lugares. Por isso a denúncia é polêmica, por isso ela dói: são práticas de privilégio, mas também identidades que são colocadas em xeque", explicou Flávia Biroli em entrevista por e-mail.

A professora da UnB comenta que a articulação vista no Globo de Ouro é mais um episódio que surge para mostrar que a demanda das mulheres por igualdade fica mais forte, em diferentes círculos sociais. O tema do assédio, contudo, não deixa de ser delicado, porque expõe um cotidiano da violência sexual que nem sempre é compreendido desta forma por homens e mesmo por mulheres. 

"Muitas de nós crescemos entendendo que a atenção masculina valoriza as mulheres, que a aparência é fundamental, e que o assédio é um preço a pagar para circular em ambientes de trabalho em que os cargos de chefia são, ainda hoje, ocupados em sua maioria por homens. As denúncias públicas permitem que muitas mulheres se deem conta de que não é necessário suportar humilhações, investidas sexuais que geram constrangimentos, a imposição de condições que nada têm a ver com as relações de trabalho para que tenham sua competência reconhecida. Permite também que se definam novos parâmetros para o que é e o que não é aceitável", esclarece. 

Flávia Biroli acrescenta que a percepção da diferença entre paquera e assédio é importante, mas que é igualmente necessário "ter clareza de que o sexismo é estrutural e se revela nas relações de poder correntes, em diferentes esferas da vida". 

"Digo isso porque há mais a fazer do que esperar que cada mulher possa estabelecer o limite entre a sedução e a humilhação, entre a paquera e a violência. O debate público sobre assédio não vitimiza as mulheres, apenas reconhece que vivemos em sociedades nas quais os homens têm privilégios e recursos para constrangê-las. E que isso é um problema - não um problema individual de uma ou outra mulher, mas um problema político, um problema social que precisa ser enfrentado coletivamente."

A professora ainda destaca que é importante que tal tema seja colocado em discussão por mulheres com visibilidade pública, mas que é preciso colaborar para que mulheres de outros espaços também sejam ouvidas. 

Eva Blay, professora titular de Sociologia da USP, coordenadora da programa USP Mulheres, ligado ao "He for She" da ONU, ressalta o "cansaço" das mulheres em permanecer quietas. "A questão da violência persiste porque as mulheres ou não falam ou não são ouvidas, porque não podem, porque têm vergonha, porque estão em posições muito frágeis. Não é por acaso que o silêncio perdurou por tanto tempo."

Blay frisa que é fundamental que as pessoas tenham a coragem de denunciar. Para ela, "é uma pena" a reação da França em relação ao movimento visto nos EUA. Ela lembra de grandes movimentos feministas do país europeu, com lideranças "absolutamente fundamentais", e o pioneirismo de lá em relação à distribuição de pílulas anticoncepcionais para adolescentes, por exemplo, sem a necessidade de consulta aos pais. 

"A França tem tido atitudes muito importantes em reação ao feminismo. Agora, cem mulheres resolveram se manifestar de maneira quase infantil. As pessoas não estão contra os homens -- eu tenho marido, tenho filho. Nós mulheres e homens queremos igualdade. Agora vir com essa tolice... eu não quero ser importunada [por homens], não. Claro que a gente quer manifestações de carinho, quer todas as possibilidades de atenção mútua, ninguém está contra a sexualidade. Nós não queremos estupros, não queremos ser obrigadas, constrangidas, encoxadas no metrô, não queremos que meninas sejam bolinadas. É contra isso que elas e nós estamos lutando. Estamos o tempo todo querendo acabar com essa atitude de forçar as mulheres a situações que elas não querem."

Para Blay, é preciso discutir a questão não apenas em torno de políticas públicas, mas de sociedade, culturalmente. Ela defende que abordar o manifesto das francesas, por exemplo, "é perder tempo", tirar a questão principal de foco. 

"Quando você vê uma sociedade que estupra um bebê, como no Brasil, meninas de 2 ou 3 anos estupradas, meninas de 10 anos de idade grávidas. Na faixa de 10 a 14 anos, não diminuiu, mas cresceu o número de gravidezes, segundo dados desta semana. Se o país está nesta situação é porque alguma coisa está errada. Nós lutamos tanto para introduzir na legislação questões importantes e estamos hoje tendo que batalhar para evitar retrocessos", completou Blay, em entrevista por telefone ao JB

Tatiana Roque, professora do Instituto de Matemática e da pós-graduação de Filosofia da UFRJ, também em entrevista por telefone, disse que a repercussão de atos contra o assédio revela uma reação ao fato de que algumas estruturas "estão mudando para valer", não só em relação ao machismo, mas também ao racismo, ao colonialismo e outras questões. "É normal que gere reação, que a carta das francesas venha logo depois do ato do Globo de Ouro. Todas as estruturas estão sendo abaladas."

A professora chama a atenção para o fato de que se mesmo a fala de mulheres tão empoderadas e com tantos meios afeta a sociedade desta forma, o que poderíamos esperar de quebras de silêncio em espaços menos privilegiados? Ela frisa que o movimento de Hollywood ajuda a reforçar a ideia de que mulheres de outras classes também têm possibilidade de reação.

"Ninguém está falando contra paquera, a cantada, é contra o assédio, o abuso. Quando se usa de uma relação de poder para cantar, é assédio. Tem a ver com relação de poder. Quando se mistura essas coisas, é para neutralizar, diminuir as denúncias. É um incômodo que vem de um lugar instituído, de conforto, que está sendo abalado pelas denúncias. Mas não tem volta!", alerta.

A paquera e o assédio

Marcelo Itagiba, delegado da Polícia Federal, ex-diretor de Inteligência da Polícia Federal, superintendente da PF no Rio, ex-secretário de Segurança Pública do RJ e ex-deputado federal, tocou na polêmica em publicação no Twitter: "Paquera e cantada diferem do assédio e são coisas diferentes. Tanto os homens quanto as mulheres praticam. O assédio se dá quando em razão do abuso de poder pretende-se submeter alguém ao impulso ou desejo não correspondido. Paquera é tudo de bom!" 

Juremir Machado da Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS, com Doutorado em Sociologia pela Universidade Paris V, Sorbonne, onde também fez pós-doutorado, frisa que as atrizes do Globo de Ouro têm razão em denunciar assédio e todo o tipo de atitude masculina inconveniente enraizada. Mas reforça uma necessidade de separar assédio e cantada. 

"Não pode destruir a sedução, o jogo amoroso, mas as mulheres também não podem tolerar mais um tipo de comportamento que, sem dúvida, é inaceitável."

O professor comenta que "faz sentido" que o manifesto contra tais movimentos venha da França. "A França gosta de polêmica. Agora, eu não creio que ela tenha defendido uma apologia ao estupro. O artigo da Danuza Leão, por exemplo, é algo Nelson Rodrigues, de que a mulher para ser feliz tem que passar por isso, é algo caricatural, que dá margem, de toda forma, para legitimar um certo comportamento inadequado, mas que também dá margem para pensar que precisamos buscar um ponto de equilíbrio", argumenta Machado. 

>> Neto de Danuza Leão critica artigo da avó contra feminismo

"O machismo não é exclusividade dos homens. As mulheres também podem introjetar uma situação machista. O sistema é perverso. Agora, há nuances. O primeiríssimo combate radical deve ser a toda forma de machismo, de assédio, contra o estupro. Esse é um ponto. Depois, a gente pode partir para as nuances. Esse discurso falsamente notálgico de que o politicamente correto acabou com tudo não dá mais, não há espaço, é conversa fiada de machista, de quem quer se agarrar ao privilégio", completa Juremir Machado.

Psicoterapeuta mexicana critica: "Excessos de todos os tipos"

Marina Castañeda, psicoterapeuta mexicana, autora de "El machismo invisible" e "El machismo ilustrado", entre outros livros, em conversa com o JB por e-mail, também chamou a atenção para a necessidade de se buscar um certo equilíbrio nos discursos. Ela diz que, "sem dúvida", é necessário que a sociedade em conjunto saiba de tudo o que o assédio ou coerção sexual gera, como a humilhação e represálias. "Isto é o que acontece, de fato, quando as pessoas são tratadas como objetos - como se fossem brinquedos que podem ser facilmente substituídos se alguém os quebrar."

A psicoterapeuta acredita que o manifesto das atrizes franceses não chega nem ao coração da questão. Entretanto, ela indica que a campanha contra o assédio e o abuso sexual "caiu em excessos de todos os tipos". "Embora a condenação pública de tal comportamento seja necessária, a atmosfera resultante de denúncia e punição distorceu o debate sobre uma questão que, finalmente, é apenas mais uma faceta da desigualdade de gênero em todas as áreas", aponta Castañeda. 

A psicanalista solicitou que o JB publicasse suas reflexões sobre o assunto na íntegra: 

Era inevitável que houvesse uma forte reação contra o movimento #MeToo. O surpreendente é que nos tenha chegado da França e de mulheres do calibre de Catherine Deneuve, tão emblemáticas de uma certa feminilidade francesa. 

Porém, não há dúvida de que a campanha contra o assédio e a coerção sexual caiu em excessos de todos os tipos. Embora a condenação pública de tal comportamento seja necessária, a atmosfera resultante de denúncia e punição distorceu o debate sobre uma questão que, finalmente, é apenas mais uma faceta da desigualdade de gênero em todas as áreas.

Sem dúvida, era necessário que a sociedade como um todo soubesse de tudo o que causa o assédio ou a coerção sexual: as pessoas que sofreram falam de humilhação, raiva, impotência, danos à autoestima e, claro, medo de represálias quando rejeitam ou denunciam os avanços sexuais dos homens. Isto é o que acontece, de fato, quando as pessoas são tratadas como objetos - como se fossem brinquedos que podem ser facilmente substituídos se alguém os quebrar. É devastador que mais uma vez tenhamos que aprender esta lição básica de convivência. 

No entanto, o deslize semântico, segundo o qual as vítimas de repente se tornam "sobreviventes" - como se suas vidas estivessem ficado em perigo - ou o toque de repente se torna uma "violação", distorceu o significado do debate. 

A carta assinada por Catherine Deneuve et al. também não chega ao coração da questão. Não se trata de estabelecer uma hierarquia do abuso, atribuindo valores diferentes a diferentes "níveis" de coerção sexual. O corpo de outra pessoa pertence apenas a ela; só ela pode dizer o que é ofensivo e o que não é. Ninguém pode dizer por ela. É por isto que não existe, nem pode existir, uma escala "objetiva" de 1 a 10 em relação à coerção sexual. 

Mas tampouco o significado de palavras e ações deve ser perdido. Beijar não é estuprar; uma memória ruim, por mais desagradável que seja, não constitui uma síndrome de estresse pós-traumático; ter passado por um mau momento não é o mesmo que sobreviver a uma guerra. 

Lamento que estejam perdendo de vista os elementos mais importantes deste debate: a facilidade com que pessoas poderosas tratam os outros como meros objetos, colocados ali para o seu prazer; e a básica e persistente desigualdade de gênero. 

Mas devemos lembrar que qualquer luta contra a desigualdade é um processo histórico, que passa por diferentes estágios. As sufragistas, em sua época, chegaram a extremos que, sem dúvida, prejudicaram sua causa; a libertação gay passou por uma fase consistente de  "outing" público de pessoas que se escondiam, prejudicando muitas delas; É possível que os ativistas trans tenham alienado muitas pessoas, em seu esforço para ser reconhecido como uma minoria discriminada. 

O movimento #MeToo, bem como seus sucessores e seus adversários, também terão que passar por muitas etapas antes de gerar novas formas de relacionamento entre homens e mulheres - ou, em uma palavra, entre aqueles que têm poder e os que não têm.

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