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'La Nación': Uma sociedade que ainda escolhe a transgressão peronista

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O La Nación publicou na quarta-feira (5/11) um artigo onde analisa a força do peronismo na Argentina. Luis Alberto Romero - membro da Universidade de San Andrés e do Club Político Argentino – escreve sobre como o movimento herdado do ex-presidente Juan Domingo Perón (que governou por três mandatos) está incrustado na política argentina há seis décadas e abala as instituições do país, através de uma corrupção quase inevitável: 

“Desde os foros acadêmicos até as conversas de café, não são poucos os que atribuem os problemas argentinos ao peronismo. Seguindo a célebre pergunta de Vargas Llosa sobre o Peru, eles acreditam que a Argentina se "prejudicou" em 1945. A resposta é tão cômoda quanto auto-exculpatória: a culpa é "deles”. Mas o peronismo já tem 60 anos de existência e parece imprescindível inverter a pergunta. O que os argentinos vêem no peronismo, para renovar nele uma e outra vez sua confiança?”. 

Luis Alberto Romero expõe sua tese: “Minha resposta, parcial e especulativa, se apóia em uma ideia de Carlos Nino: um país à margem da lei se expressa através de um movimento político como o peronismo. Eu me pergunto como isso ocorreu e o que se pode fazer, não para modificar o peronismo, mas para colocar a Argentina dentro da lei”.

Romero diz ainda que o peronismo “é essencialmente um movimento político popular, concentrado na conquista e na conservação do poder. Seu caráter popular se adequou a todas as mudanças sociais; houve um peronismo dos operários, logo outro dos militantes e atualmente um dos pobres. Seu imaginário se apóia na ideia do povo unido atrás de seu chefe, paternal e benevolente, que os fará partícipes da bonança econômica e dará em doses os consequentes remédios amargos. A isso chamam democracia "real", que distinguem daquela que é ‘somente formal’".

O argentino prossegue: “Outros setores, indispensáveis para construir sua maioria eleitoral, agregam um segundo motivo: os peronistas são os únicos que garantem governos estáveis. Os governos peronistas souberam equilibrar as demandas dos diferentes grupos de interesse, já sejam sindicatos, empresários nacionais ou empresários prebendários. Todos integram a "comunidade organizada" e para cada um têm uma solução singular, uma franquia ou um privilégio. Não atribuem muito valor à igualdade diante da lei. Muita de sua capacidade para construir governabilidade se baseia nessa flexibilidade na aplicação da norma”.

Para Romero, “conquistar e conservar o poder demandam arte política complexa e operadores muito qualificados. Aí é onde o peronismo tira vantagem. Por que as pessoas com aptidões políticas se tornam peronistas? Faz tempo elas tenham primado pela tradição, pelas ideias ou pelos sentimentos. Desde 1983 a política é uma profissão e aqueles que escolhem o peronismo fizeram um cálculo racional. Os que querem principalmente fazer carreira e prosperar encontram aí um ambiente de amplitude e tolerância ética, onde é aceitável tratar de "fazer uma diferença" pessoal, inclusive às margens da lei. Ainda que isso seja comum na política, em outros partidos é feito de maneira discreta e sem ostentação, enquanto que no peronismo a fortuna acumulada costuma ser considerada a prova da eficácia e o talento. Não é raro que muitos políticos prometedores escolham a alternativa mais cômoda, mais rentável e, finalmente, mais apreciada”.

“O peronismo tem uma concepção ampla e flexível das normas, muito adequada para um país que em geral não dá muita importância à lei, nem aos princípios, nem na prática cotidiana. Sabemos que viver de acordo com a lei não é algo espontâneo, mas um refinado produto da civilização, que implica um sacrifício, às vezes significativo, dos benefícios imediatos, para obter os benefícios mediatos de uma convivência ordenada e previsível. Por que na Argentina não se chegou hoje ao mesmo ponto? Descartemos as respostas fáceis, sempre referidas a "eles", como a idiossincrasia do argentino, sua raça, sua origem imigratória ou suas raízes criollas”, escreve Romero.

O articulista prossegue: “O exame de nossa história política e institucional pode nos dar uma pista. A Argentina se democratizou aceleradamente desde o início do século XX, em momentos de uma profunda renovação social. Sua tradição liberal e republicana, assentada apenas em 1853, sofreu desde o final do século XIX os embates do nacionalismo, o catolicismo integral e o militarismo, declaradamente antiliberais. Este complexo substrato se consolidou com os movimentos democráticos, nacionais e populares. De Yrigoyen a Perón, e como era moda na época, foram refratários ao pluralismo e à institucionalidade republicana, cuja deterioração abriu espaço para as ditaduras militares. Entre todos, aprofundaram o divórcio entre uma prática autoritária e um sistema de normas escritas, mas ignoradas. A democracia republicana de 1983 hoje nos parece como uma trégua, um recreio, ao cabo do qual os governos retomaram com brio renovado a antiga senda. Poucos são os governantes da atual democracia cujo exemplo impulsione a valorização da lei”.

O articulista diz ainda que a história do Estado argentino “agrega outra dimensão a este processo de descrédito das noções de Estado de Direito e de igualdade perante a lei. Em seus tempos de prosperidade, além de desenvolver políticas fundamentais como a educativa, o Estado utilizou seus recursos para balancear os desequilíbrios sociais e também para favorecer com generosos privilégios a diferentes grupos amigos, desde os produtores de açúcar de Tucumán de 1870 até os sindicalistas das obras sociais de 1970. Desde meados da década de 1970, o déficit orçamentário e a crescente colisão de interesses que surgiam no Estado impulsionaram sua reforma”.

“Foi uma reforma falida, que segundo o velho ditado arrastou algo de água suja, mas também muitos bebês. O Estado abriu mão de suas funções essenciais - a educação ou a segurança - e renunciou a uma gestão eficiente e ao controle da sociedade e dos governantes. A deterioração estatal destruiu o funcionalismo capaz e sua ética, e finalmente a própria ideia de que na prática governamental as normas têm algum valor. Isso se vê hoje no alto do poder, onde se instrumentaliza a corrupção, e na base, onde se misturam e confundem os delinquentes e os que devem reprimi-los. Mas, além disso, todo o chamado capitalismo prebendário ou "de amigos" foi fundado nesta ideia de que a norma não é igual para todos e que "tudo pode se ajustar", menos a lei da gravidade”, diz o autor.

Ele continua: “Supor que este desmoronamento da noção de governo da lei é responsabilidade dos peronistas é uma simplificação. Em todo caso, é compartilhada com os militares - a ditadura destruiu a noção de Estado de Direito - e com muitos auto-intitulados democráticos e liberais que não escaparam à regra. A hipótese inversa é muito mais produtiva. Uma sociedade acostumada a viver à margem da lei, a ignorar as normas incômodas e a buscar a exceção pessoal prefere uma força política cujos princípios não excluam tais práticas. Além de votar nela, revela jovens políticos que foram educados nessa prática”. 

“Se hipoteticamente alguém acabasse com o peronismo, com certeza seu lugar seria ocupado por uma força política similar. Há uma minoria atuante que gostaria de mudar  isso. Há outros que, com menos convicções, hoje experimentam na própria pele os prejuízos da falta de institucionalização, a insegurança jurídica, a corrosão das instituições estatais. Mudar isso é um longo caminho que vai muito além de uma eleição. Quem for eleito receberá um Estado deteriorado e com muitos mecanismos já montados para exercer o poder discricionário. Os interesses organizados lutarão pelo status quo, desde os sindicalistas até os vendedores ambulantes”, escreve Romero.

O autor conclui: “Quem governa deve ter uma convicção muito firme sobre a necessidade de restabelecer o governo da lei, e devem dar o exemplo: um bom magistério presidencial ajuda muito, o mesmo que uma prática de governo mais saneada e transparente. Mas é ilusório apostar tudo na reforma moral. O respeito à lei se constrói com o controle e a sanção, igual para todos. Isso depende da presença do Estado, em pequena e grande escala, esgrimindo a lei, até que o controle cotidiano deixe de ser necessário, porque terá estabelecido um controle social e o hábito. Ao mesmo tempo, o Estado pode fazer tudo. As associações civis - as voluntárias e as de interesses - devem ter a voz e a constância suficientes para vigiar, denunciar, exigir e modificar condutas, tanto do Estado quanto das pessoas. Se isso tudo acontecesse, com certeza seguirá existindo um peronismo popular, mas muito menos transgressor da lei”.