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Ex-funcionários da Ford enfrentam patrões em julgamento por ditadura argentina

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Eles eram funcionários sindicalistas na fábrica da Ford Motors na Argentina. Quando ocorreu o golpe de Estado em 1976, foram torturados e ficaram dois anos presos. Hoje, acusam os executivos da montadora.

Pedro Troiani e Carlos Propato descrevem à Justiça, quatro décadas depois, como foram presos e torturados dentro da própria fábrica, e que dias mais tarde suas famílias receberam telegramas que anunciavam suas demissões por ausência ao trabalho.

Casos similares foram denunciados em outras empresas, como a Mercedes Benz, a Renault e a Fiat, mas até hoje apenas o caso da Ford avançou. Embora o processo judicial não acuse a empresa, os demandantes querem que fique demostrada a cumplicidade com a ditadura.

A ditadura argentina, que foi de 1976 a 1983, deixou 30.000 desaparecidos, segundo organizações de defesa dos direitos humanos.

"Sem a participação dos civis e destas empresas, esse golpe não teria sido bem sucedido. Essas pessoas colaboraram, deram veículos, comida, combustíveis, deram as empresas para serem administradas como quisessem, e assim fomos sendo levados um por um", afirmou Troiani à AFP.

Em General Pacheco, na periferia de Buenos Aires, onde ainda fica a fábrica da Ford, Propato reafirma essa ideia.

"Eles colaboraram. Os carros Falcon que usaram na repressão foram pintados por mim", garantindo, lembrando dos veículos que o regime usava para sequestrar opositores.

Os dois insistem que não eram militantes políticos e que a prisão e as torturas, deles e de outros colegas, se deveu ao ativismo sindical. l.

Na fábrica da Ford, havia 100 delegados sindicais, dos quais 24 horas retirados de seus postos de trabalho.

Nesses dias, brigadas militares se instalaram no local, e os soldados almoçavam na própria fábrica, segundo depoimentos dos operários.

"Eles me exibiram algemado em toda a fábrica, como se dissessem: vejam o que pode acontecer com vocês. Os camaradas jogaram parafusos" para os militares, em protesto, recordou Troiani.

Propato aponta com o dedo para o "quincho", uma espécie de churrasqueira para atividades recreativas dos trabalhadores nas mesmas instalações da fábrica de montagem. Naquele lugar, diz ele, os militares torturaram ele e outros delegados por horas.

Ele diz que sua cabeça foi coberta com um saco plástico e ele pensou que iria sufocar, mas Troiani conseguiu fazer um buraco na sacola e "salvou minha vida".

Seu companheiro esboça um sorriso tímido, não lembrava daquele episódio e parece curioso.

De lá, foram levados para uma delegacia de polícia em Tigre, nos arredores de Buenos Aires, onde foram detidos clandestinamente antes de serem transferidos para outros centros de prisão, onde passaram quase dois anos.

"A pessoa presa sem saber por que sofre duas vezes", reflete Troiani, que, como o Propato, já teve filhos na época.

A historiadora Victoria Basualdo garante que o ativismo operário e sindical, muito efervescente nos anos 1970 na Argentina, "era uma preocupação central tanto para as forças armadas quanto para a direção das empresas".

Isso explica "o grau de repressão aplicada nos espaços de trabalho, da mobilização de efetivos armados em grande quantidade de fábricas no próprio 24 de março (data do golpe), as prisões e sequestros de trabalhadores e sindicalistas", disse Basualdo à AFP.

Na América Latina, a Argentina foi o país que mais avançou no julgamento das violações de direitos humanos desse período. Centenas de militares foram condenados e vários integrantes das sucessivas juntas militares morreram na prisão.

"Quando começou a democracia, com Raúl Alfonsín (1983-89), e as juntas militares foram julgadas, começamos a nos reunir e a perguntar 'por que, por que isso aconteceu conosco?'. Ali vimos que podíamos fazer justiça", lembra Troiani.

Após 42 anos, apenas 13 dos 24 delegados estão vivos.

Em dezembro de 2017, teve início a etapa oral por violações de direitos humanos contra os ex-diretores da Ford Héctor Sibilla e Pedro Muller. No processo, o militar Santiago Riveros também está entre os acusados.

Dezenas de testemunhas depuseram. Propato e Troiani assistem regularmente às audiências. Já Sibilla e Muller só apareceram na primeira. Estima-se que em novembro a fase de alegações possa começar e então a sentença será proferida.

Consultados pela AFP, os advogados de defesa dos ex-gerentes recusaram-se a fazer declarações.

"Eu e meus colegas lutamos para estar aqui. Para mim, o benefício que alcançamos é ter chegado ao julgamento", explicou Propato.

Troiani pede um pouco mais: "Queremos que eles sejam responsáveis e que este caso sirva de jurisprudência para outros camaradas que têm processos muito reduzidos".