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Affonso Romano de Sant'Anna e Drummond: segredos de longa data

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Unidos pelo amor à literatura, os escritores Affonso Romano de Sant' Anna e Carlos Drummond de Andrade mantiveram uma amizade de longa data e repleta de segredos. 

A parceria entre os mineiros que adotaram o Rio de Janeiro para viver começou ainda na década de 60, quando Drummond disponibilizou todo o seu arquivo para que  Sant'Anna escrevesse sua tese de doutorado sobre a importância da literatura do mineiro de Itabira.

Dando prosseguimento à semana de homenagem aos 110 anos de nascimento do poeta completados este ano, o Jornal do Brasil republica, nesta quinta-feira, a crônica "Mané e o sonho", de 22 de janeiro de 1983. O texto foi escolhido para abrir o Caderno de Esportes, dois dias depois da morte do craque. (Clique aqui e confira a crônica).

Participando das homenagens do JB, Affonso Romano de Sant'Anna escreveu especialmente para o Jornal do Brasil um pouco do que viveu ao lado do grande poeta: 

"Desde os meus 16 anos conhecia Drummond. Trocamos cartas. Nos encontrávamos em sua casa, em Copacabana, ou na rua (quando ele vinha visitar a Lygia, sua amante durante 30 anos, conhecida até por sua filha Maria Julieta). Emprestou-me todo o seu arquivo para eu fazer a tese "Drummond o gauche no tempo", ainda no fim da década de 60. O trabalho rendeu-me quatro prêmios nacionais - entre os quais Prêmio do Instituto Nacional do Livro, Prêmio Estadual da Guanabara e Prêmio da União Brasileira de Escritores. 

O Jornal do Brasil me chamou para substituí-lo como cronista, em 1984, quando ele decidiu parar de escrever crônicas, aposentando-se das páginas do jornal: isto deu uma ciumeira danada. A Mangueira o homenageou com um enredo, em 1987, e me convidaram, nessa homenagem, para sair na Comissão de Frente. Além disso, estive na banca da tese de Maria Lucia Pazzo sobre erotismo. Drummond ajudou-a a fazer a tese. Como presidente da Biblioteca Nacional consegui que Maria Lucia doasse a correspondência dela sobre erotismo e Drummond para a Biblioteca Nacional.

Duas estórias, entre as muitas que tenho guardadas em diário, vou dividir com os leitores do Jornal do Brasil". 

O obituário adiantado:

"Sensação realmente estranha, estapafúrdia, ambígua e perfeitamente normal, no entanto, tive poucos dias antes da morte do poeta. Ele já estivera internado antes da morte de Maria Julieta. E a imprensa, prevendo que ele poderia morrer a qualquer momento adiantava o obituário. É assim que a imprensa trabalha. Os jornais, para não serem pegos de surpresa, guardam obituários dos eminentes e iminentes candidatos à morte.

Ora, eu havia substituído Drummond como cronista no Jornal do Brasil , e lá Zuenir Ventura, que então chefiava o Caderno B, pediu que fizesse um ensaio sobre o poeta, porque ele poderia morrer a qualquer hora. Estranha, estapafúrdia, ambígua e perfeitamente normal a situação. Ele, vivo lá no hospital. E eu escrevendo o texto para após sua morte.

No entanto, Drummond se restabelece e o que aconteceu foi a morte de Maria Julieta de entremeio. Encontro-me com ele no velório da filha. Ele vivo, ali minha frente e o jornal já com o meu texto sobre ele morto, não se sabia para quando. Pensei, deveria dar para ele ler. Acho que ele ia achar até engraçado. Ler vivo o que sobre ele se publicaria depois de morto.

Após sua morte, um dia recebo o telefonema de uma ex-aluna, dizendo-me que Drummond aparecera numa sessão espírita e que havia mandado dois recados. Ouvi-os atentamente. Um era para Dona Dolores: que dissesse a ela para não se preocupar porque ele estava muito bem. E pronunciava a palavra- GOVENA, pedindo que a transmitisse à Dolores, que ela saberia o que era aquilo. Quanto a mim, dizia a amiga espírita, ele mandava dizer que o que mais gostara fora o título daquele meu texto que o jornal publicara: "Vai, Carlos, ser gauche na eternidade”.

Como se vê, do outro lado, ele continuava atento, atencioso e bem humorado".

O Gauche no Tempo:

"Quando Drummond o gauche no tempo foi publicado em sua  primeira edição pela Editora Lia, o poeta assim se manifestou:

-  "Mas você me desparafusou todo!”.

Achei que era mais um comentário mineiro cordial. E quando o livro foi publicado, como sucede com os autores sobretudo jovens, passei por uma livraria no centro do Rio e resolvi indagar se meu livro estava lá à venda.

- "Acabou”, disse-me o livreiro. “O poeta esteve aqui e comprou os dez últimos exemplares”.

(Reportagem: Maria Luisa de Melo/ Pesquisa CPDocJB: Lucyanne Mano/ Arte: Rodrigo Quadros).