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'La Nación': Mercosul, da grandeza à mesquinhez

Política econômica do kirchnerismo matou projeto mais ambicioso da região

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O jornal argentino La Nación publicou nesta terça-feira um artigo que analisa a trajetória do Mercosul, desde sua formação. Luis Rappoport, membro do ‘Club Político Argentino’, faz uma comparação com a União Europeia e aponta uma série de erros cometidos ao longo dos anos pelo bloco sulamericano. "A Europa foi um espaço de guerras. Nenhuma outra região do planeta foi testemunha de matanças da envergadura e da persistência europeia. Depois da Segunda Guerra Mundial, a construção do Mercado Comum unificou na sensatez a uma diversidade de culturas, religiões, idiomas, rancores e horrores.

A Ibero-America é uma experiência radicalmente diferente: duas culturas e dois idiomas que são uma só. Somos filhos das coroas ibéricas, da religião católica, do português e do castelhano, de povos originários e da imigração europeia. Somos uma identidade que - no período da construção dos Estados-nação - nós as arrumamos para buscar diversidades. Como estas nunca foram convincentes o suficiente, embora tivéssemos nossas guerras, poupamos as matanças na escala européia”, escreve Rappoport.

Ele aponta uma diferença básica: “Os europeus constroem uma identidade a partir da diversidade. Nós, ibero-americanos, construímos diversidades a partir de uma identidade de origem. Desde o início da experiência americana houve aspirações de unidade, embora até um passado não tão remoto chegamos a esboçar a hipótese de conflito com vizinhos que nunca deixaram de ser irmãos.

No início dos anos 50, no Cone Sul, Perón, Vargas e Ibáñez sonharam com o ABC (Argentina, Brasil, Chile) e em abandonar a busca inútil por diferenças para acentuar a importância do encontro. Propuseram uma integração econômica e defensiva. Essa proposta foi uma iniciativa argentina que - nos argumentos de Perón - não tem ecos dos fundamentos da construção europeia. Lembra os ‘Federalist Papers’ com que três dos pais fundadores dos Estados Unidos argumentavam em favor da Constituição Federal”.

Rappoport prossegue: ‘O sonho e a grandeza reapareceram com Alfonsín, a Declaração de Foz do Iguaçu e os protocolos setoriais de integração econômica com o Brasil. Antes teve que terminar com aquelas hipóteses de conflito com que os governos militares da região brincavam de soldadinhos. Poucos anos antes, essa perversidade esteve a um passo de levar a Argentina a uma guerra com o Chile.

Em 1991, durante a presidência de Carlos Menem, é lançado o projeto de Mercado Comum entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, o Mercosul. Como na Europa, o cimento do edifício a ser construído devia ser econômico. Se os interesses comerciais se conciliavam, poderiam se abrir camadas sucessivas de normas comuns até chegar a acordos políticos e estratégias integradas de inserção internacional. O Mercosul não foi concebido como um projeto endógeno: era uma plataforma para que, a partir de escalas maiores e com aumentos na competitividade, a região pudesse se projetar no mercado global”.

“No início, tanto a tarifa externa comum como a eliminação de barreiras ao comércio intra-regional avançaram. Logo, em um número importante de produtos sensíveis as coisas foram ficando mais lentas. No entanto, o desafio mais importante que o projeto tinha era que Argentina e Brasil alcançassem um equilíbrio macroeconômico compatível com a estabilidade dos acordos comerciais e tarifários. Com alta inflação, tipos de cambio erráticos, diferenciais bruscos nas taxas de juros, o Mercosul perderia viabilidade e travaria o processo de melhora da produtividade e a competitividade do grupo.

O ordenamento das economias era condição necessária para que o Mercosul pudesse se projetar como um jogador significativo na arena internacional. O ‘um por um’ da convertibilidade, embora tenha terminado com a inflação argentina, era uma péssima solução porque uma moeda valorizada e um tipo de cambio fixo expunham desnecessariamente e em excesso a indústria e o emprego industrial do país.

Argentina e Mercosul tiveram uma extraordinária janela de oportunidade entre 2002 e 2007, quando o país combinou uma razoável estabilidade cambial, superávits externo e orçamentário, um emprego industrial em crescimento e um dólar competitivo. Foi um ponto de partida possível para o desenvolvimento econômico argentino integrado em um Mercosul fortalecido. A condição era preservar o novo equilíbrio macroeconômico com flexibilidade cambial. Esse ponto de partida havia custado grandes sacrifícios: os da convertibilidade e os de seu colapso.

A oportunidade aberta foi desaproveitada: ao tomar a decisão de inflacionar a economia, a presidente Kirchner optou pela mesquinhez e por lesar o arranjo produtivo argentino e o projeto do Mercosul. Em vez de aumentar os salários, por exemplo, 5% sem inflação e segundo o aumento da produtividade, optou-se por aumentos de 20%, mas com 15% de inflação. A destruição do Sistema Estatístico Nacional foi parte da estratégia da mesquinhez. Enganavam a população com aumentos que não eram tais e com cifras fantasiosas. A política monetária, fiscal e de ingressos promovia a inflação. O aumento dos preços combinado com um tipo de cambio, tarifas e energia ancoradas era um convite ao desastre. E o desastre chegou com a armadilha e as restrições às importações. Se ao inflacionar a economia a Argentina feria o Mercosul, ao impor restrições ao comércio regional dava seu golpe de misericórdia. O governo Kirchner matou o projeto mais ambicioso da região. E se eliminar as hipóteses de conflito custou gerações, os monarcas da mesquinhez inventaram uma guerrinha insensata com o Uruguai em nome da política ambiental. Isso, vindo de um país e um governo com péssimos padrões de defesa do meio ambiente.

A lembrança de Perón agrega elementos ao contraste entre grandeza e mesquinhez: em seu curto período de governo, marcado pela tragédia da violência e a crise de governabilidade, o velho general pôs em marcha o Convênio Argentino Uruguaio de Cooperação Econômica, que expressava uma generosa visão estratégica ao abrir o mercado argentino às empresas e trabalhadores uruguaios e ao afirmar a possibilidade da integração regional”.

“Em 2006 surgiu o Parlamento do Mercosul para substituir a anterior Comissão Parlamentar Conjunta. Se trata de um espelho deformado do Parlamento da União Europeia. A Europa, a partir do Mercado Comum, foi crescendo na institucionalidade e na cessão de competências desde os Estados nacionais até as instituições comunitárias. A Comissão Europeia, o aparato administrativo da União, gerencia normas e programas comuns com um pressuposto significativo. Por isso, se fazia necessário criar e fortalecer um âmbito de representação cidadã nesse complexo vivo e com poderes crescentes.

O Parlasul é a copa de uma árvore seca: o mercado comum não existe, a Secretaria do Mercosul - pensada segundo o modelo da Comissão Europeia - não tem orçamento, nem tarefas, nem uma tecno-estrutura em condições de gerenciar programas comuns, e muito menos os países membros cederam parte de sua soberania ao sistema regional. Um Congresso do nada para nada.

Mas a mesquinhez encontrou utilidade nele: o Parlamento do Mercosul pode servir para que ex-funcionários possam figurar em cédulas eleitorais e para que esses mesmos funcionários tenham cotas adicionais de impunidade. Os sonhos se transformaram em pesadelos. E a unidade latino-americana? Vai bem, obrigado”, conclui Luis Rappoport.