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Angra 3 realmente é um projeto obsoleto

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Sidney Luiz Rabello, Jornal do Brasil

RIO - A réplica da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), órgão atualmente responsável pelo licenciamento e fiscalização das aplicações da energia nuclear, não contestou sequer uma linha do artigo intitulado O anacronismo de Angra 3 (JB, 05/11/2010, pág. A11). Tergiversou. Inclusive confirmou que o projeto de Angra 3 é de mais de 30 anos, e, em nenhum momento, discordou de que Angra 3 não inclui em seu projeto requisitos de segurança, decorrentes do acidente de Three Mile Island (TMI). Simplesmente omitiu qualquer menção.

Não poderia ser diferente, pois Angra 3 foi projetada à luz das usinas nucleares alemãs da década de 70 ou início da década de 80.

O Banco de Dados da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) (www-pub. iaea. org/ MTCD/ publications/PDF/cnpp2009/ countryprofiles/ Germany/ Germany2008.html) permite verificar as datas de licença de construção, as mais adequadas para servir de referência para o projeto, uma vez que este sempre antecede à construção. A usina de Grafenheinfeld teve licença de construção em 1975 e as mais recentes usinas alemãs Isar 2, Emsland e Neckarwethein 2 (konvoi) tiveram licença de construção em 1982 (pedido de licença em 1980). Portanto, não há na Alemanha nenhuma usina nuclear moderna, de projeto do final do século 20 e início do século 21. Outra evidência é que os critérios de segurança alemães não foram atualizados, são do início da década de 70 e início da década de 80, e não refletem o estado da arte da ciência e tecnologia, segundo relatório do IRRS da Agência Internacional de Energia Atômica de setembro de 2008 e segundo o GRS, órgão alemão para a segurança de reatores.

Uma vez que os critérios de segurança e os projetos das usinas nucleares alemães precederam o acidente de TMI e o amadurecimento internacional dos novos critérios de segurança, logicamente não contemplam os requisitos de segurança pós-TMI.

Os critérios de segurança pós-TMI exigem, entre outras coisas, um novo projeto para o edifício do reator de Angra 3, com requisitos adicionais para a contenção, última barreira contra a liberação de material radioativo (vide seção 3 de The impact of safety standards updating for design purposes in nuclear power plants licensing, INAC2009).

Para resolver o impasse que se estabeleceu com o artigo O anacronismo de Angra 3 e sua réplica, basta que sejam apresentadas as comprovações do atendimento dos critérios pós-TMI, para que qualquer cidadão brasileiro possa fazer a verificação de forma independente. A Cnen, atual autoridade licenciadora brasileira, poderá incluir em sua página da internet os documentos de engenharia comprobatórios. Por que não? Isto é transparência do licenciamento. É trocar as belas palavras da réplica por evidências verificáveis por qualquer um. É hora da democratização do licenciamento e da fiscalização das aplicações da energia nuclear no Brasil. Basta de sigilo, que só permite a existência de desvios, e vamos dar mais um passo na consolidação de uma sociedade aberta e democrática.

Devemos fazer como nos Estados Unidos, tomados em seus bons exemplos, onde a Nuclear Regulatory Commission (NRC), autoridade licenciadora americana, divulga fartamente toda a documentação de licenciamento das usinas nucleares americanas há décadas. Atualmente basta ir à página da NRC na internet (www.nrc.gov) e verificar por exemplo como são atendidos os requisitos pós-TMI pelo EPR da Areva e outras usinas em processo de licenciamento. Pode-se verificar também todo o questionamento técnico da NRC e as modificações de projeto decorrentes. Façam o exercício. Todos ganharão.

A divulgação ampla e irrestrita pode ser complementada pelo posicionamento da Areva, projetista de Angra 3, a mesma do EPR, sobre o atendimento dos critérios de segurança pós-TMI e pela criação de um comitê internacional, composto de profissionais que participaram na elaboração dos critérios pós-TMI, para rever o projeto de Angra 3 e apresentar um parecer técnico conclusivo.

É difícil depreender as razões de se insistir em um projeto obsoleto. Por que a Cnen não exige que Angra 3 atenda os requisitos de segurança pós-TMI? Por que não transforma em realidade a afirmação da réplica de que o único envolvimento da Cnen é no processo de licenciamento, que consiste em verificar a conformidade do projeto com as normas de segurança?

Uma autoridade licenciadora deve necessariamente fazer cumprir suas atribuições de proteção da população, dos trabalhadores e do meio ambiente, no que diz respeito às aplicações da energia nuclear, e exigir dos requerentes que introduzam no projeto toda a experiência operacional nacional e internacional, de forma a se evitar a ocorrência de acidentes e funcionamentos anormais já vivenciados em outras usinas.

Será bastante oportuna a participação da engenharia nacional, por meio do Clube de Engenharia e do Crea-RJ, no debate sobre Angra 3, uma das mais importantes obras de engenharia do país na atualidade, longe do lobby nuclear e das palavras fáceis, para que seja comprovado por documentos de engenharia se os requisitos de segurança pós-TMI estão incluídos no projeto de Angra 3 e se está garantida a proteção da população, do trabalhadores e do meio ambiente.

Sidney Luiz Rabello é engenheiro em licenciamento e segurança de usinas nucleares da Comissão Nacional de Energia Nuclear ([email protected]).