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Encruzilhada tributária: consenso sobre imposto único assusta municípios, que temem perder seu principal tributo

Marcos Tristão -
Luiz A. Barreto, do Sincaf
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Coleta de lixo, gestão do trânsito, unidades de pronto atendimento e escolas municipais. Boa parte dos serviços públicos com os quais se convive diariamente é incumbência das prefeituras. Mas somente 6% da arrecadação total - R$ 1,342 trilhão em 2017 - fica com os municípios. O orçamento local é formado por três tributos, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), o Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e o Imposto Sobre Serviços (ISS). A uma semana da eleição, com a reforma tributária na boca dos presidenciáveis e posta como desafio ao próximo mandatário, o JORNAL DO BRASIL conversou com especialistas e representantes de entidades municipalistas. Em meio a diferentes opiniões, o temor de que a nova estrutura de arrecadação retire a gestão dos impostos locais dos municípios e atrapalhe repasses, inviabilizando cidades em dificuldade fiscal, como o Rio de Janeiro.

Maior capital do país, São Paulo concentra 34% de todo o ISS recolhido no Brasil. Em seguida, vem o Rio de Janeiro, com 18%. Principal tributo municipal, o ISS garante cerca de 60% da arrecadação das capitais. A cobrança é uma das que migraria para um imposto único (IVA ou IBS), ponto pacífico nas campanhas de praticamente todos os candidatos com chances de vitória. De acordo com uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), que tramita em regime de urgência no Congresso, esse imposto deixaria de ser recolhido pelos municípios e passaria à alçada da União. “É evidente que precisamos simplificar e aperfeiçoar o sistema tributário, mas desestruturar as legislações do ISS é um salto no escuro”, argumenta Ricardo Almeida, assessor da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf). Para Almeida, isso poderia diminuir ou, ao menos, atrapalhar o montante que chega às prefeituras.

O presidente Michel Temer tem manifestado interesse em promover a reforma tributária após as eleições. Antes, porém, precisa suspender a intervenção federal no Rio, situação que impede qualquer modificação na Constituição. Uma proposta para dar fim à intervenção já tramita na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), mas o prazo é curto. A reforma enseja ampla discussão: além da natureza do imposto único, deve haver consenso sobre o mecanismo de transição para o novo sistema e sobre modificações em cada uma das cobranças, ajustes finos para evitar distorções e trazer mais progressividade — princípio segundo o qual a incidência dos impostos deve ser maior sobre quem tem mais capacidade de contribuir.

“Antes do mérito em si, o trâmite da proposta de Hauly já é problemático. Foi um cavalo selado que passou e ele aproveitou”, diz Carlos Cardoso, presidente da Federação Nacional dos Auditores e Fiscais de Tributos Municipais (Fenafim). Ele lembra que o deputado embarcou a reforma em outro texto, que tramitava no Senado desde 2004, só para dar celeridade à aprovação. “Uma mudança dessas não pode ser feita a toque de caixa”, pondera. “Deveríamos, primeiro, discutir a redistribuição dos impostos. A Emenda 95, do teto de gastos, é decisiva. A União responde hoje pelos gastos do SUS, mas os municípios brasileiros arcam com 40% desse custo. Se a emenda ficar, em 20 anos, a parcela nas costas dos municípios saltará para 51%. Só isso é motivo suficiente para não sacrificar os governos das cidades”, explica.

Cardoso também lembra que, com a perda do ISS, só restariam às cidades os impostos sobre o patrimônio (IPTU e ITBI), em um momento em que os serviços já representam mais de 70% do PIB. “Os outros entes (União e estados) veem esse crescimento dos serviços e, por estarem falidos, unem a fome à vontade de comer”, acusa.

O economista Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCF) e que propôs emendas ao texto de Hauly, afirmou ao JB que suas ideias podem resolver o impasse distributivo e, inclusive, já contariam com o apoio de municipalistas paulistas. “O IBS seria recolhido em uma conta centralizadora e gerida por uma comissão mista com representantes da União, estados e municípios, com repasse automático a cada parte”, explica. Outra diferença importante entre a proposta de Appy e a de Hauly é a carta dos impostos a serem unificados. Appy quer colocar no guarda-chuva do IBS os já existentes PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS. No texto original, a unificação é mais ampla. Além daqueles, reune ainda IPI, Cide, salário-educação, IOF e Pasep.

Além disso, os proponentes da reforma tributária divergem sobre o formato de transição e os impostos especiais, que ficariam fora da cobrança unificada. Hauly propõe que a mudança de arrecadação aconteça em seis anos e a adaptação da distribuição leve 15 anos, com alíquotas estabelecidas em leis complementares. Já Appy propõe uma alíquota nacional e transição de dez anos para a cobrança e 50 anos para a partilha entre os entes da federação. Haveria uma alíquota nacional idêntica para todos os bens e serviços, com espaço para alguma autonomia de estados e municípios.

Também procurado pelo JB, o jurista Ives Gandra Martins se diz entusiasta de ambas as propostas, mas é cético sobre a aprovação. “Os governadores não querem abrir mão da autonomia do ICMS, que permite a guerra fiscal entre os estados. Teria de haver uma articulação brutal com os governadores eleitos em outubro”, diz. Já para a professora de Ciências Contábeis do Ibmec-RJ, Ana Beatriz Moraes, ainda mais complicado que a consertação é tornar o novo formato funcional sem concentrar ainda mais os repasses. “Simplificar é preciso, mas ainda não está claro como isso vai acontecer. Deslocando a arrecadação, o risco de prejudicar estados e municípios é real. Em um cenário de crise fiscal generalizada, tudo fica mais delicado”, lembra.

Um dos argumentos mais utilizados para justificar a urgência das reformas é a quantidade de horas gastas por ano para que uma empresa brasileira preencha os documentos necessários e pague seus impostos: 1.958 horas ou cerca de 80 dias, uma das maiores burocracias do mundo. Segundo Luiz Antonio Barreto, presidente do Sindicato Carioca dos Fiscais de Rendas (SINCAF), há um discurso dogmático com relação à criação do IVA, quando os problemas se concentram no pagamento do PIS, Cofins e ICMS, impostos estaduais que guardam complicações como critérios de distribuição subjetivos (ICMS), mudam de região para região ou incidem sobre várias etapas da circulação dos bens. Tais especificidades têm lotado a Justiça de processos, lembra.

Sobre o projeto que tramita em Brasília, os municipalistas questionam até mesmo eventuais compensações à perda da gestão de impostos. Um exemplo seria a mudança no Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) que, no texto do Hauly, continuaria sendo arrecadado pela União, mas integralmente repassado aos municípios. “Se a União não fica com nada, me pergunto quanto investirão para aperfeiçoar essa arrecadação já deficiente”, argumenta Ricardo Almeida, da Abrasf. Mais do que gregos e troianos, vai ser muito difícil agradar a três Olimpos.

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Consumo taxado

Mais da metade de tudo que o Fisco arrecada vem do consumo. Essa tributação é bastante questionada por seu caráter regressivo — impacta mais os pobres, que, proporcionalmente, comprometem uma parcela maior da sua renda com a compra de bens e serviços. Entretanto, é improvável que a prevalência da carga sobre o consumo seja alterada pelas propostas que dominam o debate público. Todos os especialistas ouvidos pelo JB exaltam o caráter estratégico dessa base de incidência por seu caráter elástico e a possibilidade de controle direto, mas apontam as distorções do caso brasileiro. “No Brasil, pagamos mais impostos por energia do que por perfume, um contrassenso absoluto”, reclama o jurista Ives Gandra, para quem a saída está na criação de impostos especiais, fora do IVA, que incidiriam sobre determinados produtos. “É possível taxar consumo de forma justa, desde que se tribute supérfluos. Há critérios na Constituição para isso, mas o Fisco prefere matar o passarinho na gaiola, indo em cima do que é básico”, aponta Ricardo Almeida, da Abrasf. Ele lembra que produtos essenciais como energia elétrica, telefonia, combustíveis e até da cesta básica são sobretaxados. Em alguns casos os preços são inflados pelos chamados “encargos setoriais”, cobranças criadas ainda na ditadura, que funcionam como impostos disfarçados. Na proposta de Bernard Appy, a tributação do consumo não cai, “mas é mais racional”, explica o economista. “Além disso, existe espaço para tributar mais a renda, olhando para lucros e dividendos ao mesmo tempo que se desonera a folha de pagamentos”, defende Appy.

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