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Após consagração em Berlim, ‘A festa’ traz ao Brasil humor ferino da cineasta Sally Potter

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Ao conseguir o “sim” da nata do cinema europeu – sobretudo, medalhões ingleses - para rodar um longa-metragem de verve irônica sobre os desgovernos do Reino Unido, em vias de Brexit (a separação do país da União Europeia), a diretora britânica Sally Potter, hoje com 68 anos, pressentiu algo de inusitado para o futuro de “A festa”, um filme hilário. “The party” é o título original deste recente exercício autoral de uma premiada carreira, iniciada em 1969: ou seja, há quase 50 anos. O pressentimento de bons augúrios – confirmados com uma indicação ao Urso de Ouro e a conquista de uma série de prêmios nos maiores festivais do Velho Mundo e da Austrália – era similar ao que a cineasta sentiu quando concluiu seu festejado “Orlando, a mulher imortal” (1992), maior sucesso de sua trajetória nas telas. Só que esta nova produção - em pré-estreia no Rio hoje, às 23h59, no Espaço Itaú, prevista para ampliar seu circuito na próxima quinta-feira - tem uma ofensiva política mais explícita, e até suicida (como Sally descreve) do que os demais filmes desta realizadora de cults como “The tango lesson” (1997) e “Ginger & Rosa” (2012).

Pequenininha em termos de duração (são só 71 minutos, sendo cada um deles mais delicioso do que o outro), esta comédia em preto e branco é precisa em seus alvos políticos, ao mirar na hipocrisia dos ingleses... e de outros povos da Europa e das Américas. Foi o filme mais ovacionado da Berlinale de 2017, em parte por sua concisão, mas muito por sua habilidade de destilar fel sem perder a elegância. Não há uma frase sequer no roteiro, escrito pela própria cineasta, que não esbanje escárnio, sobretudo por sair da boca da nata do cinema europeu, começando com Timothy Spall (da franquia “Harry Potter”). A seu lado estão astros de distintas gerações e nacionalidades, vide o irlandês Cillian Murphy (“Dunkirk”), as britânicas Kristin Scott Thomas (de “O paciente inglês”) e Emily Mortimer (do recente “A livraria”), a americana Patricia Clarkson (de “Vicky Cristina Barcelona”) e o mítico ator alemão Bruno Ganz, o anjo de “Asas do desejo” (1987). “Escolhi um grupo de intelectuais combativos para viver um teatro de decepções, capazes de revelar o quanto a esquerda se enfraqueceu na Inglaterra”, disse Sally ao JORNAL DO BRASIL na capital alemã, de onde seu filme saiu com o Guild Film Prize, dado pela imprensa germânica.

Além do tom sufocante do visual P&B, impresso pelo fotógrafo Aleksei Rodionov, toda as estratégias de direção buscada por Sally em “A festa” alimentam um clima de claustrofobia. Ambientado em alguns cômodos de uma casa, a trama acompanha as confusões que se instauram durante uma ceia na casa da nova ministra da Saúde do Reino Unido, Janet (Kristin) no momento em que seu marido, o fragilizado ex-professor Bill (Spall, em genial atuação), faz um par de revelações bombásticas aos convidados. Estão nessa festa: um casal de lésbicas (Cherry Jones e Mortimer); um investidor do mercado financeiro com o nariz in?amado de cocaína, Tom (Cillian); a melhor amiga de Janet, April (Patricia, cujos diálogos são os mais ferozes do filme) e seu namorado germânico, o espiritualista Gottfried, vivido por Ganz numa atuação hilariante. “O maior trabalho desse filme foi a escalação das estrelas, pois eu passei um tempão atrás de uma trupe bem distinta entre si que pudesse dar seriedade ao riso”, diz Sally, que, num bate-papo em Berlim, regado a litros de chá verde e água com gás, falou sobre sexismo, Brexit e arte de exceção.

JORNAL DO BRASIL: Qual é a Inglaterra que está retratada nos bastidores da trama de traições e desabafos de “A festa”? 

SALLY POTTER: É a Inglaterra da histeria do Brexit, que opta por se afastar da União Europeia por um golpe retórico calcado na intolerância em relação às diferenças. O que sempre preservou o processo civilizatório foi a mistura de raças: vencido o medo inicial da barbárie, diante da vinda de estrangeiros, iniciava-se uma nova cultura, mista. Foi assim com os gregos, os romanos, os cristãos medievais. Mas hoje nós tempos o Trump. E a aproximação dele nas franjas do Brexit é um indício de erro histórico para a ideia de Reino Unido que se pretende fundar agora. 

Por isso fazer uma comédia? 

Boa. Sim... por isso a comédia, pois rir é a forma de espelhar a loucura. “A festa” é bem objetivo a começar da escolha do título: durante uma hora e onze minutos, tudo o que se vê no filme é uma celebração. Amigos, risos, música, comida. Mas a cada cômodo da casa em que filmamos - por duas semanas, tendo o elenco em peso, inteiro, por apenas dois dias -, os nossos sete convidados vão sendo empurrados por um corredor de tensão e de colisão.

Qual é o alvo político central da sua ironia neste filme? 

A privatização da Saúde como um negócio rentável para o governo inglês. Não é aceitável que um país com tanto problema de desemprego como é a Inglaterra possa estuar a privatização de serviços básicos para a preservação do bem-estar de seu povo. É segregação pelas vias do dinheiro: os pobres serão descartados. 

Por que uma narrativa tão enxuta? 

Porque os filmes andam longos demais, e com pouco a dizer. Ser econômico é uma virtude quando se lida com dramaturgia pois o tempo da narrativa, que espelha o tempo da vida, não pode ser perdido. Diante de uma narrativa condensada, o público não perde o seu foco, nos personagens e naquilo de político que eles representam. 

E por que o preto & branco? 

Bom, tendo a seu lado um gênio da fotografia, que passou pelo clímax do cinema soviético, como Aleksei Rodionov, que tem no currículo o cult “Vá e veja”, você não pode perder a chance de arrancar dele tudo o que ele tem a oferecer em relação às limitações plásticas da imagem. E eu adoro o preto & branco, pois esse recurso tira o excesso de informação do quadro fílmico e convida à abstração, uma vez que abre lacunas para o espectador preencher com suas próprias impressões. 

Em 2019, a senhora vai completar 50 anos de cinema, como diretora. Como a senhora vê o pleito por mais espaço para mulheres na direção nos dias de hoje? 

Vira e mexe, alguma liderança de ativismo feminista vem me procurar dizendo que fui uma pioneira entre as cineastas europeias. Sinceramente, eu nem penso nisso, pois sempre pude me impor sem encarar problemas de sexismo, pois o tipo de filme que eu faço é muito diferenciado das cartilhas hegemônicas da indústria, é guerrilha, é experimento. Criar na periferia da arte te dá alguma vantagem: a igualdade de direitos é uma delas, pois quem milita no mesmo terreno artístico em que eu vivo sabe as dificuldades de poder se fazer ver e ouvir no circuito. Agora, é óbvio que alguma forma de intolerância sexista eu já sofri. Nos anos 1970, quando eu comecei a filmar, mulheres que experimentavam o sucesso profissional eram vistas como exemplo de fracasso pessoal. Nunca me senti fracassada. Estive ocupada demais lutando em prol de causas humanistas quando estavam falando de mim, pelas costas. Mas... Essa luta das mulheres diretoras passa por algo importante: não é só um aumento quantitativo de quadros profissionais, é a mudança de discurso, é a mudança de olhar.

E já um novo coro de vozes femininas nas telas que lhe impressiona? 

Tem ótimas diretoras no cinema e no teatro. Mas tem, ao largo do que possa me impressionar, a manutenção da ferrugem nas engrenagens da indústria: se eu, como mulher, tive a chance de fazer uns nove longas, em cinco décadas, meus conterrâneos ingleses homens tiveram, nesse mesmo período, oportunidade e suporte para fazer uns 20, 30 filmes. Veja, não quero soar contraditória: o sexismo direto, agressivo, eu não encarei, por pertencer a uma ala do cinema mais autoral, experimental... mas o preconceito de gênero não deixou de resvalar na minha trajetória. 

O sucesso de “Orlando, a mulher imortal”, icônica discussão da condição feminina, que te rendeu quilos de prêmios, começando pelo Festival de Veneza 1992, mudou, de alguma forma, seu lugar na discussão política dos direitos das mulheres no cinema? 

Esse filme só me trouxe alegrias, mas não me trouxe rótulos: o que possa existir de feminista nele veio da literatura de Virginia Woolf, de quem eu busquei uma reflexão sobre a representação da condição humana, que transcende o sexo. 

*Roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ)