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Garcia-Roza conclui novo romance do seu 'quase herói', delegado Espinosa

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Talvez pela onipresença de livros por todos os cantos do escritório de Luiz Alfredo Garcia-Roza, no Centro do Rio, Dostoiévski, Freud e Philip Roth pegam carona múltiplas vezes neste papo do JB com o escritor carioca de 82 anos sobre seus novos feitos. Há um romance inédito dele,  “Sombras”, já nas mãos da Companhia das Letras, para ser lançado nos próximos meses. “Uma prostituta é o coração desse livro, sua personagem central”, adianta o autor. 

Ok, Garcia-Roza, mas tem Espinosa? “Tem”, confirma ele, para a alegria dos fãs do culto, calejado e, por vezes, afetivamente carente delegado que ele criou nos anos 1990 e virou cult.

Calcado no suspense, “Sombras” é mais um capítulo da saga de Espinosa em seu esforço de manter a ordem na Zona Sul do Rio. Tramas como as de “Achados e perdidos” (1998) e “Na multidão” (2007) fizeram dele um dos mais aclamados personagens da literatura policial brasileira. Há tempos, o gênero acolheu este já aposentado professor da UFRJ e da Uerj - referência nacional nos estudos de Psicanálise, por ensaios seminais como os de “Freud e o inconsciente”, que ele publicou em 1987, e é estudado até hoje como leitura obrigatória em cursos de Comunicação e Psicologia.

Desde 1996, com “O silêncio da chuva”, Garcia-Roza escreve sobre investigações, assassinatos e rotinas de delegacia. Um de seus romances sobre crime, “Berenice procura” (2005), ganhou uma livre adaptação para o cinema, sob a direção de Allan Fiterman, com Cláudia Abreu no papel central, que hoje está em cartaz no circuito brasileiro.

Na entrevista a seguir, o escritor dá as suas impressões sobre o filme, fala sobre o novo romance e faz um balanço de sua carreira literária na ficção, num paralelo com suas reflexões sobre a violência nas ruas do Rio. 

JB: Temos livro novo vindo aí? 

Luiz Alfredo Garcia-Roza: Tem um livro entregue à Cia. das Letras. Ele se chama “Sombras”. E tem o Espinosa. É a história de uma prostituta. Mais, não dá pra dizer, se não, entrego demais. Não é uma prostituta como as da literatura de Dostoiévski, como sua personagem Sonia. Se não, teria que ter um Raskolnikov atrás dela, como a gente lê em “Crime e castigo”.

“O silêncio da chuva”, livro de estreia de Espinosa, foi lançado em 1996 e coroado com o Jabuti, a nossa maior honraria literária. Depois de 22 anos, como anda sua relação com ele?

Ele é um quase um gêmeo meu. E olha que eu tive, na prática, um irmão gêmeo. Minha mãe teve dois bebês gêmeos: eu e outro, que viveu apenas por uns dois meses. O nome Luiz Alfredo, que tenho, é uma mistura de nossos nomes. Um seria Luiz e o outro, Alfredo. Com a morte do bebê, virei Luiz Alfredo. Ele se foi, mas eu o carrego no meu nome. E nome não muda. Espinosa mudou um pouco nesses 22 anos, teve até que vender o carro, numa história. E envelhece: apareceu com 42 anos e hoje já caminha para os 70, com todos os problemas da idade, e fica sempre pensando se em algum momento vão manda-lo embora. O que não muda é o fato de ele ser um tipo raro hoje em dia: alguém que acredita na ética. Espinosa não é bom nem mau: é só sujeito de seu modo de ser. Um sujeito da ética. 

PSICANALISTA, AUTOR DEIXA FREUD FORA DE SUA FICÇÃO

Autor de livros seminais para o estudo da psicanálise como “Freud e o inconsciente”, o senhor renovou a literatura policial brasileira com Espinosa. O quanto a psicanálise entra na sua escrita de ?cção? 

Não entra. Nem Freud entra. Nem ele, nem a Filosofia, pois seria a morte da possível literatura que busco produzir, investindo unicamente na ficção. O que faço é ficção pura, apesar da presença maciça do Rio de Janeiro, de Copacabana. Meu campo ficcional é o universo de um funcionário público honesto, consciente de que seu cargo tem uma importância social. O nome dele evoca um filósofo, Spinoza, o meu preferido entre os modernos, um pensador que manteve sua autonomia. Mas eu trouxe a grafia aportuguesada para o meu Espinosa, com “E” e “s”. E o que eu busco com esse personagem, esse delegado, é mostrar que um policial pode ser e se manter honesto sendo um agente de um aparelho do Estado no Brasil.  

Quais foram suas impressões sobre a versão de “Berenice procura” para as telas, em cartaz há três semanas e cercada de elogios da crítica cinematográ?ca? 

Não chamaria de adaptação. Chamaria de libertação. Uma libertação em relação ao livro. A Cláudia Abreu está muito bem. Ela é muito boa atriz. E o menino que faz o filho, Caio Manhente, causa um impacto enorme pela beleza. É um filme com ritmo forte, quase marcial. 

Espinosa encontrou uma tradução ?el na nossa produção audiovisual, de alguma forma? 

Na TV, sim, no seriado da GNT com o Domingos Montagner. Ele deu corpo ao que eu imaginava do personagem. E era um artista multifacetado, que fazia drama bem e ainda era palhaço. 

Fala-se muito de Espinosa, às vezes de Berenice, quando sua obra é citada, mas a sua mais ?el personagem, em todos os seus livros, é Copacabana, lugar onde o senhor nasceu e onde vive até hoje. O quanto Copacabana ainda lhe fascina e o que ela tem de mais triste hoje?

Copacabana é linda. Basta olhar a orla, entre o Leme e Ipanema. É um minimundo, com uma geografia muito particular, um submundo rico não só de malandros, mas de uma vida que não conhecemos. Mas eu, que nasci em 1936, sou de uma época em que Copacabana era sinônimo de liberdade. Lá pelo fim da II Guerra, ou pouco depois, em 1946, quando já estava com uns dez anos, meus amigos e eu saíamos de bicicleta e circulávamos o bairro todo. Ali, pelo Bairro Peixoto, havia uns bambuzais em que a gente se enfiava para brincar, livremente. Hoje, não. Hoje, deu 20h, fica impossível sair de casa sem ser assaltado. 

Qual é o sentido de se falar em violência, como sua obra faz, frente a um contexto desses? 

Talvez seja uma redundância, mas de modo algum é uma catarse. O Homem é mau, e violento, potencialmente. Até o Espinosa. Mas, pela ética dele, potência não vira ato: a violência não sai dele.

Em meio à produção de uma ?cção tão poderosa, quanto é o conjunto das narrativas de Espinosa, o senhor ainda se encanta em ler outros autores? Que literatura o fascina hoje?

Leio muito ainda, mas cada vez mais literatura ficcional e não a ensaística. Philip Roth, que morreu há pouco, era um autor que me fascinava sempre. Mas eu gosto muito de um escritor que parece não ter, por aqui, um reconhecimento à altura do que produz: Cormac McCarthy, autor de “A travessia” e “A estrada”. E tem Dostoiévski. Ele sempre está por aí. 

Depois de décadas de magistério e de livros sobre psicanálise, Freud ainda te surpreende? 

Freud ainda é atual. Atual pela riqueza teórica, prática e literária de sua obra. Estamos falando do criador de um campo de pensamento capaz de gerar reflexão sobre a contemporaneidade. 

Há planos de novos livros de sua autoria sobre ele? 

Não. Tenho uma fantasia, antiga já, de escrever um livro de Filosofia. Quem bota o pé na Filosofia, mesmo que de leve, não tira mais. Mas é preciso força pra poder levantar um projeto desses. Uma hora, quem sabe...   

* Roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro