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Exposição reúne gravuras de Goya, carregadas de fortes críticas ao governo e à sociedade

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Figuras sinistras, sombras fantasmagóricas, expressões de sofrimento, tons obscuros e gestos inquisidores. É preciso olhar atentamente para perceber todos os detalhes de cada uma das 19 gravuras que fazem parte de “Loucuras anunciadas - Francisco Goya”. A exposição que abre hoje na Caixa Cultural Rio, no Centro, apresenta a série do álbum intitulado “Los proverbios”, publicado em 1864 pela Academia de Belas Artes de San Fernando. 

“Elas só foram catalogadas nas mãos do terceiro dono e eram 22, originalmente. Mas Goya já havia presenteado quatro delas, que depois foram recuperadas. Uma inclusive, chamada ‘Disparate da besta’, feita na França, está nesta exposição”, diz a curadora Mariza Bertoli.

As gravuras marcam um período de maturidade - e de doença - do pintor e ilustrador espanhol (1746-1828), quando ele se isola na Quinta do Surdo, em Madri. “São da mesma época das famosas ‘Pinturas negras’, trabalhos com os quais avançou praticamente cem anos no Expressionismo. Foi um período de sofrimento, pois além de ter ficado surdo, perdeu muito dos movimentos e da fala, certamente devido ao saturnismo, causado pela contaminação de chumbo da tinta branca. E também se endureceu por conta das guerras napoleônicas”, conta, ressaltando que a série é marcante e misteriosa porque Goya a fez para a posteridade. “Ela ficou guardada no baú por anos, pois ele tinha receio da Inquisição. Afinal, faziam críticas mordazes à época, não poupando autoridades, governo nem clero.” 

Feitas com água-tinta, água-forte e ponta-seca com brunidor, sobre chapas de cobre, elas são as últimas obras gráficas de Goya e especula-se que foram criadas entre 1815 e 1820. O curioso é que, paralelamente a esta produção mais agressiva, o artista mantinha seu trabalho junto à nobreza, pintando retratos por encomenda. 

“Mas é também quando ele começa a fazer os quadros de gabinete, com mais liberdade e exercitando mais a sua narrativa. Época também que já havia incluído o sobrenome da mãe, algo comum só entre os nobres, tornando-se Francisco José de Goya Y Lucientes”, explica, justificando o nome da exposição sem o “de”, uma alusão a Goya querer voltar a ser um homem comum, abordando as mazelas do povo.

Chamadas também de “Disparates”, as gravuras ganharam uma disposição cuidadosa nas paredes da Galeria 1 da Caixa, que iniciam com o “Disparate fúnebre” e terminam com o “Disparate claro”.

“Escolhi como ponto de partida a imagem que aponta a mudança do artista. Tem uma coruja com rosto de mulher, figura interpretada como renascimento. Nessa simbologia com alegoria, pode-se ver um homem morto que se levanta, renascido. Para fechar, tem a gravura que afirma que ele não abandonou a utopia: as figuras levantam a lona do circo enquanto expulsam figuras não queridas, como soldados e padres. É a revolução”, explica Mariza, que é Membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica).

Os traços finíssimos e detalhistas das gravuras monocromáticas de Goya convidam o visitante a ter um olhar atento e demorado em cada obra da exposição “Loucuras anunciadas”. Em “Disparate do cavalo raptor”, que simboliza a força do sexo, há dois ratos gigantes - um, inclusive, devorando uma mulher - que parecem paisagens. Na crítica ao casamento indissolúvel “Disparate matrimonial” , Goya cria um monstro siamês com oito pés, que acusa o padre de sua situação. Para “ajudar” o público nessas identificações, a exposição tem uma parte com ampliações de detalhes de algumas gravuras acompanhadas por textos explicativos.

A atualidade de alguns temas desenhados por Goya há duzentos anos é impressionante. Em “Disparate ridículo”, onde o artista usa a máxima “cada macaco em seu galho” para denunciar a situação de miséria de pessoas de diferentes nacionalidades, é impossível não correlacionar com o drama dos imigrantes na Europa. 

“Outra situação que, infelizmente, identificamos nos dias atuais, é retratada na gravura ‘A lealdade’, onde Goya valoriza a figura do homem leal numa época em que a delação premiada era o comum. Acho que é o ponto que ele queria chegar com essa série, à figura da bondade, cercada por personagens alegres, como um franciscano, uma criança e um homem a cavalo”, compara a curadora. 

Um dos poucos momentos “felizes” percebidos nas gravuras é em “Disparate feminino”, onde mulheres brincam com fantoches. “Eram as costureiras, que sabiam dos segredos de todos, desde militares, pois faziam uniformes, até da nobreza”, explica Mariza. “Modo de voar” - que ganhou uma alegoria na entrada da exposição - mostra também um Goya mais leve, que sugere um desejo de liberdade. Curiosamente, a estrutura usada pelos homens para voar, que parece uma asa delta, tem uma cabeça de pássaro vestida como um chapéu. “Foi uma preocupação dele para que as formas não fossem confundidas com asas de morcego, que era na época uma alegoria diabólica”, explica. 

Interatividade

Mariza, que é especialista em arte latino-americana, criou setores interativos na exposição para despertar ainda mais a curiosidade do público. “Pensei em um espaço que gerasse inquietações, onde os participantes vivenciem o exercício estético”, explica. Duas gravuras ampliadas foram colocadas de forma para que as pessoas se fotografem diante delas. Uma delas é da “A lealdade”, que tem um banquinho posicionado em frente à figura central da figura para a pessoa sentar.

Já “Os ensacados” - que marca bem a época da doença de Goya que, na biografia, conta que não lembrava onde tinha visto aquela imagem, se na prisão, asilo ou teatro, mas que se sentia daquela forma, como um ensacado - tem, ao lado, cabides com sacos para a pessoa “vestir” e interagir com a imagem. 

“Será uma experiência forte fotografar-se nestes cenários. Ver-se entre os loucos é inusitado e leva a valorizar a liberdade de não estar ‘ensacado’. Afinal, no início da mostra, nos perguntamos: pode-se anunciar loucuras?”, diz a curadora, que coordena um encontro amanhã, às 19h, para falar sobre a vida e obra de Goya e das personalidades importantes com quem conviveu. A entrada é franca, mas é necessário se inscrever pelo e-mail [email protected].

Além das imagens ampliadas, acessórios, máscaras e capas ficarão à disposição para que as pessoas façam suas próprias produções para fotografias e espelhos - um côncavo e outro convexo - permitem que os visitantes se vejam sob outras perspectivas.

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Serviço 

Exposição Loucuras Anunciadas – Francisco de Goya - Caixa Cultural Rio/Galeria 1 (Av. Almirante Barroso, 25 - Centro; Tel.: 3980-3815). Ter. a dom., das 10h às 21h. Abertura: Hoje, às 19h. Entrada franca. Até 7/10.