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Onde está o underground carioca?

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A história é recorrente: músicos, geralmente jovens, precisam de um espaço para ensaiar e gravar. Alugam e equipam então um pequeno imóvel, que, além de servir como estúdio, passa também a sediar shows, da própria banda e de amigos. A casa cresce e se estrutura um pouco melhor, a programação se diversifica, um público se habitua a frequentá-la. 

Nos últimos anos, cresceu no Rio a opção de lugares com esse perfil. O símbolo maior é a Audio Rebel, em Botafogo, que, aos 13 anos, chega a ter programação quase todos os dias da semana. Tocam ali desde grupos principiantes de hardcore e punk, como acontecia nos primórdios do estabelecimento, até ícones da música de vanguarda mundial. 

Outro também já veterano é o Escritório, numa rua perto do Campo de Santana, que comemora cinco anos em agosto. Instalado na sala miúda de um sobrado, realiza shows casuais e frequentemente intimistas, de bandas formadas por pessoas que ainda não estão na casa dos 20 a compositores com carreira sólida na MPB. 

Há ainda aqueles espaços mais novos: o Aparelho, na Praça Tiradentes, que, desde setembro do ano passado, quase todas as semanas têm uma programação desafiadora, inventiva e ruidosa, de gêneros como noise, música eletroacústica e improvisação livre, e a Etnohaus, em Botafogo, que, em um ano e meio, já recebeu mais de cem shows. 

São casas que operam em esquema informal e despretensioso, com priorização total da música. Não há opção de comida, para beber vende-se sobretudo cerveja, os ingressos são baratos (é raro que cheguem a R$ 30) e, quando enchem muito, podem incomodar claustrofóbicos.  

Apresentam também algumas das opções mais criativas, variadas e singulares da música na cidade, do jazz à novíssima MPB, de veteranos do rock à poesia sonora, da produção experimental internacional a quem reinventa o baião. 

A programação impressiona os frequentadores. Na opinião de um deles, o estudante Hermano Callou, “é muito impressionante que seja possível ver pelo menos um show de música experimental ou de música de vanguarda por semana no Rio e que quase ninguém saiba disso”. 

Estes estabelecimentos são altamente dependentes de figuras amadoras no sentido original do termo. Isto é, como diz o Dicionário Houaiss: “aquele que gosta muito de alguma coisa; amante, apreciador, entusiasta”. 

O que, com frequência, significa trabalhar sem ter remuneração, enfrentar noites vazias quando se achava que fossem encher ou até mesmo gastar dinheiro próprio, com o propósito de apenas promover a música que se admira e em que se acredita. 

Uma figura que exemplifica isso é Bernardo Oliveira, um dos produtores do Quintavant, sessão itinerante (costuma ser na Audio Rebel, mas já aconteceu até em São Paulo) de “música experimental e adjacências” criada em 2010. Por vezes, ao não conseguir apoio de hotéis para receber músicos de fora da cidade, ele abre as portas da própria casa e os hospeda ali. Ou de Lê Almeida, do Escritório, onde às vezes dormem frequentadores que moram na Baixada. 

Os casos, além de ilustrar a dedicação dos envolvidos, também expõem dificuldades. Os fundadores de todas as casas se queixam de pouco dinheiro à disposição, de um público restrito e de muita volubilidade de acordo com modas. 

Apertos assim levaram dois espaços que faziam parte desse circuito a fechar as portas no primeiro semestre de 2018: o Coletivo Machina, que funcionava na Lapa e encerrou as atividades em maio, e o Motim, a única dentre todas as casas tocada por mulheres, que ficava no Centro e fechou em abril. 

Em ambos os casos, dificuldades com aluguel foram mencionadas pelos responsáveis dos espaços, que dizem que desejam reabri-las. Alguns dos membros do Machina procuram um imóvel perto da Praça Tiradentes, enquanto o Motim deve voltar em dois meses, na Rua Leandro Martins, no Centro. 

Bernardo Oliveira menciona algo que poderia facilitar a vida de todos. De acordo com ele, “as casas têm pouca articulação entre si”. O produtor afirma que elas poderiam estabelecer parcerias para, por exemplo, conseguir apoio e compartilhar programação, mas o diálogo é muito limitado. “Se houvesse a sistematização de uma rede, conseguiríamos encaminhar causas comuns”, diz. 

Além das quatro casas descritas neste roteiro, artistas que não integram as antigas grandes gravadoras também se apresentam em festivais (como por exemplo o Levada, que vai até o dia 27 deste mês), em espaços como o Teatro Ipanema e em lugares fora da Zona Sul e do Centro, como a Void Madureira e a 57 Casa Aberta, no Rocha. 

Estes são, contudo, os espaços que, com mais frequência e regularidade, promovem os shows que costuma se chamar de independentes. O gênero mais comum é o rock, mas há espaço para jazz, MPB ou música eletrônica, entre outros. 

O intuito é o que relata Filipe Giraknob, um dos sócios do Aparelho que, há quase uma década, também fundou a Quintavant: “As pessoas precisam saber que, se quiserem sair, têm para onde ir. É importante que elas saibam que é gostoso tomar cerveja vendo banda ao vivo”.

Audio Rebel

A nave-mãe da música independente na cidade não se prende a convenções como nacional e estrangeiro, popular e  obscuro, alta e baixa cultura. Ali passam os nomes mais célebres da nova MPB, como Ava Rocha, Metá Metá e Pedro Sá. Também se apresentam os medalhões que os precederam, como Jards Macalé e Jorge Mautner, bandas clássicas do punk nacional, como Dead Fish e Mukeka di Rato, seus possíveis substitutos, ainda nos primeiros shows, tributos a nomes clássicos do jazz, como John Coltrane e Miles Davis, a vanguarda do jazz mundial, como Peter Brötzmann e Matana Roberts, e muito mais. A casa em Botafogo (R. Visconde Silva, 55 - Tel.: 3435-2692) surgiu em 2005. Pedro Azevedo, aos 23 anos, e  o sócio Daniel Ribeiro, produziam eventos de punk. Já tinham algum equipamento e montaram um pequeno estúdio. Desde então, a casa cresceu. Hoje funciona como loja de discos, estúdio e sede de shows. Nesta década, a Rebel, como é chamada, ?cou muito associada à música experimental. A programação, que pode ser acessada no Facebook do espaço, vai bem além disso. De acordo com Pedro, geralmente há jazz 3ª e domingo; 6ª e sábado “é um pessoal mais novo”, 4ª é a nova música brasileira, 5ª o Quintavant. “Mas isso pode variar, dependendo da semana”, ele a?rma. Hoje, por exemplo, se apresenta a banda paulistana de folk Pássaro Vadio. Amanhã, a poeta gaúcha Angélica Freitas e a compositora e cantora mineira Juliana Perdigão unem poesia e música. Na terça, Juliana retorna sozinha. Os três shows estão marcados para 20h, horário habitual da casa, e custam R$ 20. 

Aparelho

Instalado na sala de um sobrado (Praça Tiradentes, 85), costuma ter uma programação desa?adora e ruidosa, de gêneros como noise, música eletroacústica e death metal. Os artistas que se apresentam com frequência incluem nomes como Sannanda e Deaf Kids. É administrado por dois veteranos da música experimental da cidade, Filipe Giraknob (que foi integrante da popular banda indie Supercordas) e Marcos Thanus. Além de músicos do Rio, tem procurado trazer também nomes de fora. Ontem, sediou show da Patife Band, banda paulista de pós-punk que voltou à cidade depois de dez anos, em noite esgotada com antecedência. Filipe a? rma que as noites em geral têm dado 40 espectadores, mas que a casa chega a acomodar até 90 pessoas com conforto, a depender do gênero musical. Hoje, a partir das 19h, tem show da Kalouv, banda de pós-rock e instrumental de Recife, e da banda de noise carioca Gorduratrans, a R$ 20.

Escritório

Composto pela saleta, pela cozinha e pelo corredor de um sobrado, completa cinco anos em agosto. Às vezes, sedia shows para 10 ou 15 pessoas, mas já passaram por ali nomes como os Boogarins, uma das principais bandas psicodélicas nacionais, o compositor Gui Amabis e a cantora Laura Lavieri. Costuma ser associado a Lê Almeida, 33, músico da Baixada que criou o espaço para ter onde deixar equipamento no Centro. O Escritório (Rua da Constituição, 64 - Centro) levou à criação também um selo, chamado Transfusão Records. Lê diz que o espaço tem sido cada vez mais frequentado por pessoas com média de 20 anos. Com alguns desses frequentadores, o produtor criou o conjunto Oruã, que se apresenta nesta terça (10) às 19h, com “contribuição espontânea” como preço. Eventualmente, os shows acontecem também na rua, que costuma ?car deserta à noite.

Etnohaus

Dez pessoas cuidam da “casa colaborativa” em Botafogo (R. das Palmeiras, 26 - Tel. 4107-8406), que, além de funcionar como estúdio, há um ano e meio também promove shows. Neste tempo, já organizou mais de cem encontros, como parte do projeto “Etnohaus com vida”.  Alguns dos sócios são responsáveis também pelos blocos de carnaval Agytoê e Maracutaia. Há alguns artistas que são presença frequente, como a banda carioca Mohandas. Já passaram por ali também nomes como Bem Gil, Domenico Lancellotti e Bruno di Lullo,  o compositor Arthur Nogueira, que já compôs músicas para Gal Costa e Cida Moreira, e a cantora e compositora pernambucana Doralyce, que mistura maracatu, coco, manguebeat e samba. Os ingressos costumam ter “preço sugerido” de R$ 20. Nesta quinta (12), às 19h, se apresenta o compositor Marcelo Fedrá.