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Heitor Dhalia dirige “Tungstênio”, longa baseado em premiada HQ que aborda violência e intolerância

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Quando lançou a HQ “Tungstênio” em 2014, Marcello Quintanilha tocou em questões que talvez não imaginasse que se tornariam tão pungentes no país quatro anos depois. Depois de ganhar vários prêmios, como o de melhor história policial no 43º Festival Internacional de Quadrinhos Angoulême, na França, a história chega hoje ao cinema sob direção de Heitor Dhalia. “O Marcello retrata o Brasil diverso, de verdade, falando de racismo estrutural, intolerância e violência doméstica e policial”, enumera Dhalia.

A adaptação, que traz José Dumont, Fabrício Boliveira, Wesley Guimarães e Samira Carvalho no elenco, foi tão fiel que pode-se até dizer que os desenhos de Marcello se tornaram o storyboard do longa. Dhalia destaca a engenharia sofisticada da história, que inclui, em sua narrativa temporal, presente, flashbacks e “flashforwards”. “Freeze frames” (cenas congeladas) e enquadramentos muito próximos, em sua maioria de baixo para cima, são recursos que chamam a atenção. “Usei uma câmera grande angular porque dava resultados mais expressivos, devastando os personagens e sugando o espectador para dentro da narrativa. Uma estética já apontada nos quadrinhos, mas em que avançamos ainda mais, abusando da câmera delirante”, conta o diretor. 

Quando Heitor Dhalia apresentou a ideia da adaptação da HQ para o quadrinista Marcello Quintanilha, perguntou se ele ficaria incomodado de ter outro roteirista. “Ele disse que não, porém, se interessou em elaborar o roteiro. O resultado foi ótimo, mas não tinha linguagem cinematográfica. Foi aí que entraram Marçal Aquino (que trabalhou anteriormente com Dhalia em “O cheiro do ralo”) e Fernando Bonassi para dar um recorte num segundo texto. Nas filmagens, uma hora eu optava mais pelos quadrinhos, outra pelo roteiro e vice-versa”, conta. 

Outro elemento da HQ — que tem o nome do metal que serve de base para fabricação de projéteis e outros produtos — mantido por Dhalia no filme foi a figura do narrador, interpretado por Milhem Cortaz. “O narrador é popularesco e nada confiável. O Milhem, com aquela voz e seu tom irônico, foi uma escolha perfeita. Um detalhe interessante é que não é comum um narrador em terceira pessoa, soa ‘old school’”, brinca o diretor. 

O filme se passa num subúrbio de Salvador — “Fiquei chocado, é muito chapa quente”, diz Dhalia — onde vivem o policial Richard (Fabrício) e sua mulher Keira (Samira), o militar reformado Seu Ney (Zé Dumont) e o jovem Caju (Wesley) que, no recorte de um dia, têm as vidas entrelaçadas em situações extremas de violência, intolerância e desespero.  

“O Fabrício, que é de Salvador, tem um carisma que era necessário para dar uma amenizada em seu personagem que não é corrupto, mas extremamente violento. José Dumont, lenda do cinema nacional, é o militar saudosista e autoritário, mas que carrega uma motivação humana ao tentar corrigir  Caju”, descreve Dhalia. “E há também nossas duas apostas, que são Wesley, que vem de um grupo de teatro da periferia e é super talentoso, e Samira, modelo que faz seu primeiro trabalho de atriz. Quando vimos aquela força, aquela majestade, não tivemos dúvida em escalá-la”, elogia.

A crueza do longa é exposta também na trilha sonora reduzida — só há música nos raros momentos felizes e descontraídos. “Há a presença do berimbau, mas esse funciona mais com uma pulsação, algo para marcar uma aflição”, diz Dhalia, que lamenta que o filme coincida com um quadro de deterioração social tão grande no Brasil. “É uma tempestade de falta de representação aliada a um golpe institucional, uma piora em todos os cenários. O que percebo também é algo contraditório: há um esgotamento das utopias, e, ao mesmo tempo, nunca se teve tanta vontade de mudar. Ainda assim, sou otimista”, afirma.

Dhalia, que já dirigiu oito longas — o primeiro  foi “Nina”, em 2004 —, diz que hoje o mercado cinematográfico brasileiro está melhor por causa dos mecanismos criados para estruturar os filmes, como o Fundo Setorial do Audiovisual. “Isso realmente movimenta a economia. Por outro lado, continuamos com o gargalo da distribuição. Toda semana entra um blockbuster que ocupa quase todo o circuito”, reclama.   

O diretor tem uma produção inédita, rodada ano passado, chamada “Ana”, ainda sem data de estreia. Em 2019, ele vem ao Rio, sua cidade natal — apesar de ainda ter sotaque por ter ido pequeno para Pernambuco com a família, e mesmo estando radicado em São Paulo há 25 anos — para rodar um longa sobre funk. “É uma ficção inspirada nesse patrimônio nacional tão atacado por ser da periferia, que também vai mostrar a guerra das milícias e os movimentos sociais dentro das favelas”, anuncia.