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Entrevista - Joe Karaganis: pesquisador sustenta que pirataria é uma questão de preço

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Presente em praticamente todo o mundo, a pirataria de conteúdo se deve à própria organização dos mercados culturais: ao mesmo tempo em que os produtos são anunciados para todos, só uma parcela da população pode pagar por eles. Esta é uma das conclusões de Joe Karaganis, vice-presidente do instituto The American Assembly, da Universidade de Columbia, que faz palestra na Fundação Getúlio Vargas hoje. Em seu trabalho, ele estuda como a economia do conhecimento é regulamentada ao redor do mundo, com interesse especial na pirataria. 

O estudioso organizou, entre outros, os livros “Media piracy in emerging economies” (2011) e “Shadow libraries” (2018), sobre, respectivamente, a pirataria no mundo globalizado e como estudantes acessam textos necessários à formação. Os dois livros estão disponíveis gratuitamente na internet e têm capítulos sobre o Brasil, escritos por pesquisadores da FGV.

Hoje, ele fala no seminário “Tecnologias regulatórias: Novas fronteiras da educação e cultura”, no auditório do 12º andar da FGV. A programação, que continua amanhã, começa às 9h e a palestra de Karaganis é às 16h30. O evento é aberto ao público e a entrada é gratuita.

JORNAL DO BRASIL: Por que a pirataria é tão disseminada? 

Joe Karaganis: Em nossos estudos, entendemos que isso se relaciona a como os mercados culturais estão organizados. Os mercados de música, cinema, software e livros se tornaram globais. Ao fazer isso, eles passaram a fazer publicidade para mais pessoas do que aquelas que podiam pagar. A indústria começou a mirar em 6 bilhões de pessoas, mas só 1 bilhão de fato tinha dinheiro para bancar os itens anunciados. Havia um gap entre o anunciado e a capacidade de acesso — o marketing alcançava bilhões, mas os preços só eram viáveis para uma fração. E então as tecnologias de cópia se tornaram mais baratas e as pessoas começaram a fazer mais cópias, preenchendo esse vazio. 

Então você entende tratar-se de uma questão de preço?

Há um grande elemento relacionado a preços: um DVD original custa 20 dólares no Brasil, mesmo preço dos Estados Unidos, enquanto os piratas saem por 1 ou 2. Mas parte da questão também se explica por uma mudança de expectativas. Quando as pessoas só podiam consumir pequenas quantidades de cultura, isto é, quando havia uma limitação física aos produtos culturais, as expectativas eram diferentes em relação ao que se podia acessar. Quando a maior parte dos itens se torna digital, tudo fica disponível. E os serviços piratas foram os primeiros a atender essa nova demanda, a dar acesso a quanta cultura as pessoas quisessem. Nos últimos anos, isso mudou, sobretudo em termos de vídeo e música, com os serviços de streaming.

Qual é sua opinião sobre o streaming?

Considero um passo inevitável e muito positivo. Os serviços de streaming são as formas legais que surgiram para repetir aquela sensação de que tudo está disponível. Aquilo que tornou o Napster algo tão empolgante há 20 anos foi replicado por esses serviços: demorou 20 anos para encontrarem o modelo adequado, mas aconteceu. Eles não eliminarão completamente a pirataria, porque há pessoas que não podem pagar pelos serviços e vão fazer cópias piratas. Mas, tudo bem com isso, também.

No caso do Spotify, há muita controvérsia sobre quanto dinheiro vai para os artistas. Há relatos de pessoas que tiveram milhões de reproduções e ganharam menos de cem reais. Como você vê estas críticas? 

Esta é uma preocupação real: ninguém sabe quanto os músicos são pagos. Uma das razões disso é que as companhias mantêm estes números em sigilo. Não sabemos quanto o Spotify paga nem como esses valores são diferentes dos do Youtube ou dos da Apple, por exemplo. Meu grupo de estudos está atualmente dedicado a entender esta questão. .

A pirataria é a mesma em economias de baixa e média renda e nos países desenvolvidos? 

Quando começamos nossa pesquisa, as estratégias de preço das grandes empresas de cultura eram muito simples: estabeleciam o preço para os EUA e a Europa e adaptavam ligeiramente para outras economias. Socialmente, entretanto, as diferenças eram muito significativas. No caso dos softwares, por exemplo: os programas de computador atualmente são parte da infraestrutura de um país. Para a maioria dos países, contudo, os preços dos programas simplesmente não eram acessíveis. Isso levava à pirataria, é claro. Nos últimos anos, contudo, as empresas começaram a se tornar mais conscientes em suas políticas. Em alguns casos, começaram também a pressionar entidades que podem pagar, e têm muita força para fazer isso, como monopolizam alguns mercados. 

A pirataria também cria oportunidades de inovação?

Com certeza absoluta. O software, de novo, é o melhor exemplo. Nos casos de alguns países, entre 90 e 95% dos sistemas operacionais são pirateados. Todos os negócios usam esses programas, produzindo uma informação crítica, sem a qual nenhuma economia moderna pode funcionar. Em nosso novo livro (“Shadow Libraries”, MIT Press, 2018), também estamos estudamos como a maior parte do material educacional em economias de renda média ou baixa, como o Brasil, é fotocopiado.  A educação ao redor do mundo nos últimos 40 anos baseia-se na cópia. A única diferença é que em alguns países essa prática é legal, enquanto, em outros, não. No Brasil, nas décadas de 1970 a 90 era legal, até que uma mudança no final daquela década tornou a prática ilegal.

E como você entende que o Estado e a sociedade devam lidar com essa prática de cópia de livros?  

É importante saber que, nas universidades, todo mundo copia. Isso não vai parar. A questão é como legalizar um número maior de atividades. Há três soluções: a primeira é incentivar obras com licenças abertas, do tipo Creative Commons, que autorizam a cópia das obras. A segunda, é o modelo das bases de dados, em que os custos são absorvidos, por exemplo, pelas bibliotecas. Esta é uma forma de tirar o assunto da visão de todo mundo, sem enfrentar questões mais polêmicas. A terceira, por fim, são soluções envolvendo leis de direito autoral: legalizar o que os estudantes já fazem, expandindo a prática do chamado “uso justo” [doutrina que autoriza a cópia em determinadas situações]. 

É possível acabar com a pirataria? Qual é uma política pública apropriada para lidar com a questão?

A pirataria está deixando de ser uma grande preocupação para as indústrias criativas, como era há 20 anos com a emergência do compartilhamento digital. As dúvidas existenciais de que o cinema ou a música iam morrer se provaram falsas. Conforme as indústrias se reconfiguraram, a pirataria foi marginalizada. Isso já aconteceu com a música, com o cinema e a TV e começa agora a acontecer com os livros, que são a última fronteira, porque ler no papel era muito mais agradável do que ler em aparelhos digitais. Em relação à lei, desde a origem dos direitos autorais, entende-se que, se a lei não for boa, coisas boas deixariam de ser produzidas. Isso, no entanto, não têm acontecido: o número de obras está aumentando, não há problema de produção. A defesa de uma lei mais rígida é desmentida pela grande produção criativa em toda a parte nos últimos dez anos.

E há, a seu ver, algum lado negativo relacionado a essa ascensão do streaming e à diminuição da pirataria?

Vejo dois riscos. O primeiro é a possibilidade de termos uma vitória completa de Hollywood em âmbito global. O sistema de publicidade e hype, que Hollywood faz melhor do que ninguém, pode diminuir a demanda por produtos locais. A segunda ameaça é a diminuição da demanda por coisas novas. Quando todos os filmes, músicas, livros e programas de TV estiverem à disposição, isso pode canibalizar a demanda por novo material. Esta pergunta do material novo competindo com o velho ainda precisa ser respondida.