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Corpos e afetos sob o viés do exílio: Luciana Hidalgo parte de protestos de 1968 em “Rio-Paris-Rio”

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Autora de “Rio-Paris-Rio” (Editora Rocco), seu segundo romance, a escritora Luciana Hidalgo - ganhadora de dois prêmios Jabuti pela biografia de Arthur Bispo do Rosário (Editora Rocco) e o ensaio “Literatura da urgência - Lima Barreto no domínio da loucura” (Annablume, 2008), parte dos protestos de Maio de 1968 para seu livro, que amplia circulação mundo afora. Selecionado pelo programa de residência para escritores da Maison des Écrivains Étrangers et Traducteurs de Saint-Nazaire, na França, entrou para a Seleção FNAC, exposto com destaque nas recomendações da rede de livrarias, ao lado de obras célebres da literatura brasileira, como “A paixão segundo G.H.”, de Clarice Lispector. Tem sido amplamente acolhido por professores-pesquisadores em suas investigações acadêmicas sobre literatura e ditadura. 

“O Maio de 68 foi o estopim da minha ficção. Queria falar sobre a ditadura também sob o viés do exílio, daí a ideia de escrever quase todo o romance na Paris de 1968. Meus personagens, Maria e Arthur, moram na França, mas a distância não apaga as marcas do autoritarismo militar no Brasil: ela é neta de um general envolvido diretamente no Golpe de 1964, ele é filho de um jornalista comunista. Os dois, muito jovens, vivem uma paixão explosiva, flanando pela cidade do cartão-postal, dos monumentos e museus, das ruas habitadas por artistas e boêmios. Mas, quando as manifestações dos estudantes franceses no Quartier Latin acontecem, há uma quebra”, situa. 

Maria estuda Filosofo a na Sorbonne, Arthur é poeta e artista de rua. Eles se conhecem numa festa que o personagem Marechal dá em seu apartamento, no prédio em que a estudante mora e de onde ela se conecta com o Brasil, ouvindo “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, e visitando suas reminiscências do país distante enquanto estuda a obra de Descartes. 

Em “Rio-Paris-Rio” Maria e Arthur percebem que, no momento em que os conflitos irrompem, são apenas estrangeiros, estranhos, intrusos, penetras na grande festa que era Paris. “Escrevi os capítulos em que Maria, Arthur, Pablo (fugido do regime fascista na Espanha), José (fugido do autoritarismo de Salazar, em Portugal) e Marechal (filho de um militar brasileiro de esquerda) se juntam aos estudantes franceses no Boulevard Saint-Michel, tentando mostrar o deslocamento de exilados estrangeiros numa luta que não era deles”, ilustra a autora. 

A final, o movimento dos alunos de Nanterre e da Sorbonne tinha começado como uma simples revolução de costumes, de comportamento, com exigências quase singelas do tipo: meninos queriam frequentar os quartos das meninas. “É claro que depois o Maio de 1968 tomou grandes proporções, com a adesão de operários e trabalhadores em geral, chegando a literalmente parar a França com greves nos setores básicos de produção. Mas a situação no Brasil era tão, tão mais grave! E historicamente não há como ignorar uma ‘coincidência’: exatamente em junho de 1968 estudantes fizeram manifestações no Rio, com reivindicações que de início também se restringiam a questões universitárias”, complementa. 

O romance já é leitura obrigatória em pelo menos dois cursos em universidades brasileiras: “Tópicos especiais em prosa III”, na Universidade de Campinas (Unicamp), e “Ditadura, diáspora e exílio”, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Também já foi citado em duas publicações recentes: “Arquivos da ditadura” (Eduerj), de Euridice Figueiredo (Universidade Federal Fluminense/UFF), e “Crônicas do golpe” (Record), de Felipe Pena. Recentemente, a poeta americana Rachel Morgenstern-Clarren fez uma tradução primorosa do primeiro capítulo de “Rio-Paris-Rio” para o inglês, publi cada recentemente na revista de literatura americana The Offing (httpss://theoffingmag.com/translation/rio-paris-rio-chapter-1/). 

Luciana nasceu em 1965, um dos motivos que também a levaram a abordar o período. “Era um Brasil recém-golpeado pelos militares. Passei a infância sem perceber como a ditadura incidia sobre as rotinas, os corpos e os afetos que me rodeavam. Com o medo imposto pelo regime militar, a censura à imprensa e o boicote a qualquer arte minimamente reflexiva, fui uma das tantas crianças alienadas, crescidas num regime totalitário que controlava até – e sobretudo – o pensamento. Fomos norteados por uma moral e um comportamento militaresco, principalmente na escola, onde se sucediam hinos nacionais, homenagens à bandeira e o ensino de matérias como ‘Educação Moral e Cívica’. Só descobri o horror da ditadura na adolescência, quando li ‘O que é isso, companheiro?’, de Fernando Gabeira”, conta. 

Formada em Comunicação, Luciana começou a vida de repórter no JORNAL DO BRASIL. Dosar verdade e ficção foram uma constante no discurso da escritora. “Com certeza ‘Rio-Paris-Rio’ tem um pouco de tudo o que já estudei, li, pesquisei, trabalhei, tanto da prática de repórter em grandes jornais quanto da carreira acadêmica na área de literatura, quando aprendi a ver tudo com mais complexidade e exercitei a pesquisa com todo o rigor da universidade”, reflete. Luciana fez pesada pesquisa para o romance, tanto no Brasil quanto na França, onde morou durante anos e pôde ler diversos títulos sobre o Maio de 68, além de consultar, por exemplo, os arquivos do jornal ‘Le Monde’, para ler a cobertura do movimento, dia após dia, em detalhes. 

A partir deste manancial, o desenho dos personagens foi definido. “Apesar dos personagens serem ficcionais, a reconstituição histórica que faço é bastante fiel aos fatos: as barricadas, a repressão da polícia, e até detalhes como o apoio de alguns moradores do Quartier Latin que, solidários aos estudantes, jogavam água para aliviar neles o efeito do gás lacrimogêneo. Ou abriam os portões de seus edifícios para que entrassem e escapassem dos policiais. Cenas muito bonitas, reais, que quis levar para a ficção”. 

A absurda afinação entre 1968 e 2018, com pontos de contato de golpes políticos, supressão de direitos dos trabalhadores e garrote no avanço das democracias, não poderia ser previsto ao longo do processo de escrita. “Mas devo dizer que um fato macabro, talvez profético, aconteceu durante a pesquisa: em março de 2014, no cinquentenário do Golpe de 1964, um coronel do Exército resolveu confessar à Comissão Nacional da Verdade que havia torturado e assassinado militantes de esquerda. Diante da confissão inédita de um militar, pensei que aquilo deflagraria enfim um mea culpa por parte das Forças Armadas. Que nada. Um mês depois, o tal coronel foi assassinado. Isso me chocou demais e soou como mau presságio”, lembra.