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Almanaque da insubmissão: "1968: eles só queriam mudar o mundo" ganha reedição comemorativa

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Dez anos se passaram desde o lançamento de “1968: eles só queriam mudar o mundo”. Para comemorar meio século do emblemático ano, a Zahar reedita o livro dos jornalistas Regina Zappa e Ernesto Soto dedicado ao tema. Exceto por um prefácio inédito de uma página, a obra permanece a mesma. A recepção, no entanto, tem sido muito diferente: 

 “O interesse agora é muito maior do que há dez anos”, diz Regina. “Atribuímos isso ao momento que vivemos, em que ocorre um retrocesso conservador em todos os lugares. Além do que acontece no Brasil, há Trump nos Estados Unidos, partidos de extrema- -direita chegando próximos ao poder na França, entre outros. O desejo de resistir a isso pode explicar o interesse na obra”. 

Fartamente ilustrado e definido pelos autores como um almanaque, o livro conta os acontecimentos do Brasil e do mundo mês a mês. De acordo com a dupla, que participa de bate-papo hoje às 20h na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, a proposta foi organizar a obra com lógica similar à da internet. 

Ao lado da narrativa principal, boxes trazem depoimentos, análises, anedotas e letras de música. Elenco estelar contribui com textos, de Chico Buarque a José Dirceu, de Lúcia Murat a Domingos de Oliveira. 

“É um período efervescente, cheio de acontecimentos em contextos e lugares muito diferentes. Quisemos fazer essa pesquisa porque a data causava muita curiosidade, sobretudo entre pessoas mais jovens. Ao longo do caminho fomos descobrindo que tinha acontecido muito mais coisa do que imaginávamos. Há episódios muito conturbados e tensos, mas o pano de fundo é sempre de rebelião e desejo de mudança”, diz Regina. 

Das barricadas a ‘O bebê de Rosemary’ 

Como não poderia deixar de ser, estão lá os episódios que viriam a se tornar símbolo das esperanças da época, como os protestos contra a Guerra do Vietnã nos Estados Unidos, as barricadas em Paris em maio e a Passeata dos Cem Mil no Rio. 

Há, também, aqueles que representariam os infortúnios e as desgraças da geração: os assassinatos de Bob Kennedy e de Martin Luther King, o massacre de M? Lai, o AI-5. A ideia é apresentar a multiplicidade da era a quem não a viveu, das inovações de Yves Saint-Laurent na moda ao pensamento da Escola de Frankfurt, da Teologia da Libertação a “O bebê de Rosemary”, de Geraldo Vandré à Primavera de Praga. 

“O ano de 1968 é diferente de todos os outros do século passado. A característica que o torna singular é a quantidade espantosa de acontecimentos importantes no espaço de um ano. Ele continua repercutindo até hoje, sem que as pessoas saibam defini-lo”, diz Ernesto, ator ele mesmo desse intenso agora: em 1968, era jornalista do Correio da Manhã e militante do MR-8. 

No livro, os autores contam como parte da turbulência começou de modo súbito e inesperado, como por exemplo os episódios de maio em Paris, cujo princípio remonta a demandas de estudantes da universidade pela democratização do ensino universitário. A emergência da Primavera de Praga, comumente descrita como uma tentativa de “dar uma face humana” ao socialismo na Tchecoslováquia, por sua vez, também foi intempestiva e envolve exigências estudantis. 

Os episódios fazem pensar nas Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, quando protestos contra o aumento do transporte em capitais escalaram para um movimento amplo e difuso, envolvendo milhões de pessoas país afora. Em relação a possíveis similitudes, os autores do livro divergem: 

“Me fazem muito essa pergunta, mas só percebo duas semelhanças entre junho de 2013 e 1968. A primeira é que as pessoas foram para a rua. A segunda talvez diga respeito ao antigo movimento francês, mas não ao brasileiro: há quem diga que a rebelião por lá começou porque os estudantes estavam entediados. Tudo ia bem, havia prosperidade. Quando tudo bem, você vai lutar pela felicidade. Isso pode ser relacionado ao Brasil de 2013”, diz Regina. 

“Fora isso, não vejo mais nada, porque, em junho, não havia movimento coeso. Os protestos ali começaram com um movimento relacionado a passagens de ônibus, mas havia uma questão antipartidária agressiva, muito diferente. As reivindicações eram diferentes, era contra tudo isso que está aí. Isso foi a origem do golpe que veio depois”, acrescenta. 

Ernesto, por sua vez, não estava no Brasil há cinco anos, mas percebe semelhanças: “Vendo à distância, entendo que o movimento aqui começou banal, contra a passagem de ônibus. A partir daí as pessoas foram para a rua e espontaneamente surgiram palavras de ordem que superaram o marco inicial contra o aumento do ônibus. Eu acho que há semelhanças entre isso e o Maio Francês e a Primavera de Praga. Em todos os casos, conforme cresce o número de manifestantes, radicalizam-se as exigências”. 

É inútil revoltar-se? 

No fim do livro, o tom é um pouco agridoce, com o endurecimento da ditadura no Brasil, a consagração de De Gaulle nas urnas e a repressão soviética na Tchecoslováquia, entre outros. “O mundo não mudou como se queria. Sonhava-se com a liberdade sem limites, o socialismo de rosto humano, a cidadania solidária, a justiça social, o fim de todo tipo de discriminação e repressão e a paz para se viver todos os amores. Muitas dessas utopias ficaram para trás como desejos singelos”, escrevem os autores. 

Isso deixa uma pergunta no ar: é inútil revoltar-se? “O que aprendo é que não adianta se revoltar, conseguir algumas coisas, sentar no sofá e deixar os problemas para lá. A revolta e o estado de inquietação têm de ser permanentes, seja na idade que for”, afirma Regina. 

Ernesto concorda: “É justo revoltar-se contra o aumento da passagem de ônibus, mendigos na rua ou qualquer coisa que não seja justa. É claro que há diversas formas de fazer isso, desde a desobediência pacífica até pegar em armas contra regimes extremos. Mas a rebelião faz parte da vida: se você não se insurge, está deixando de viver”.