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Filmar é viver: Costa-Gavras lança livro com memórias de sucessos em Cannes

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Ao saber que tem cinéfilo brasileiro na fila de autógrafos para seu livro de memorias, “Va où il est impossible d’aller”, lançado na quinta-feira na Fnac de Cannes, em meio ao agito do maior festival de cinema do mundo, Costa-Gavras manda um recado a um amigo: “Diz para o Luiz Carlos Barreto curtir bem o aniversario de 90 anos dele e manda ele filmar... porque quando a idade chega, trabalhar é o melhor remédio”. 

O conselho mandado para o produtor cearense, responsável por sucessos como “Dona Flor e seus dois maridos” (1976), é um gesto de carinho do realizador de cults como “Z”, Oscar de melhor filme estrangeiro e de melhor montagem em 1970. Mas é também uma confissão daquilo que mantém vivo o papa dos thrillers políticos. 

Aos 85 anos, Konstatínos Gavrás, diretor nascido em Arcádia, na Grécia, em 10 de fevereiro de 1933, e naturalizado cidadão francês, só pensa em trabalhar. Além do tijolaço de 520 páginas que lança pela editora Seuil, ele é o responsável pela presidência da Cinemateca Francesa, em Paris, onde vive, e ainda tem um filme novo para tirar do papel: "Adults in the room".

“Não tenho o protagonista ainda. Estamos montando o elenco. Vai tudo devagar nessa fase do processo de levantar um filme”, diz Costa-Gavras, desconversando, para evitar dar detalhes sobre adaptação do livro homônimo de Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, sobre a falência de sua nação. “Com o descrédito das lutas de classes, a religião mais poderosa que existe neste mundo se chama Dinheiro, uma força amoral que não guarda respeito por nada, sobretudo por fronteiras. Não existe fundamentalismo que seja mais terrorista do que o liberalismo selvagem. O dinheiro tem uma ideologia: comprar o silêncio de todos em nome do lucro”.

Primeiros passos da carreira 

Palavras ainda mais ferinas do que dessa frase saem da boca de Costa-Gavras em “Dedo na ferida”, o novo longa do documentarista carioca Silvio Tendler, previsto para estrear no dia 31, trazendo o diretor de “Z” entre seus entrevistados. No documentário, laureado com o prêmio de júri popular do último Festival do Rio, o cineasta europeu faz uma análise das falências morais da economia do Velho Mundo, refletindo sobre os efeitos das políticas liberais sobre as Américas. E o cinema também pode ser afetado pelo arrocho do capital, como ele desabafou com os consumidores da Fnac, antes de autografar seus livros. 

“Acho que o único arrependimento que tenho na vida diz respeito aos projetos de cinema que não pude filmar por falta de financiamento. Um roteiro não filmado dói como um amor mal-acabado. E, hoje, a decisão sobre o futuro dos filmes reside nas mãos de investidores ligados a canais de televisão, pois é da TV que vem o nosso fomento, em coproduções”, disse o cineasta, que em  “Va où il est impossible d’aller” relembra os primeiros passos de sua carreira a partir de seu longa de estreia, “O crime no carro dormitório”, em 1965.

Suas recordações passam ainda por suas incursões por Hollywood com “Atraiçoados” (1988) e “O Quarto Poder” (1997), e por sua experiência de fazer uma love story em “Um homem, uma mulher, uma noite”, que ficou dois anos em cartaz em São Paulo, lotando salas “Estranharam ver um camarada que discutia o papel da esquerda e da direita fazer um filme romântico. Vai ver as pessoas não entendem que nada é mais politico do que o amor”, diz o cineasta, cujo último filme foi “O capital”, de 2012. 

Foi depois de “Missing” - Palma de Ouro em 1983; Oscar de melhor roteiro adaptado em 1983 - que Hollywood decidiu importar Costa-Gavras. E ele foi, para aprender como funciona um cinema pautado em ideologias de bilheterias altas. “Foi bom ter feito ‘Missing’ com Jack Lemmon, pois ele morava em meu imaginário desde que eu vi ‘Se meu apartamento falasse’. Era lindo ver naquele clássico como ele transmitia sofrimento pelo olhar”, contou Costa-Gavras a seus futuros leitores. 

Em 2015, quando a seção Cannes Classics exibiu uma copia restaurada de “Z” – prevista para entrar em circuito na Europa a partir de janeiro, em tributo ao cinquentenário do longa – Costa-Gavras veio à cidade, a convite da Comissão Europeia de Cultura, para falar sobre problemas industriais do cinema, incluindo a dificuldade de fazê-lo chegar em territórios marcados pela miséria, onde ele poderia servir como instrumento de denúncia. “As dialéticas mudaram, caiu a divisão entre Comunismo e Capitalismo que regia o mundo pelo maniqueismo e o inimigo agora é outro: é a selvageria do capitalismo neoliberal. A questão é que todo mundo que prega a dignidade na política é tachado de esquerdista. Se você acha que priorizar o respeito ao próximo é um gesto de esquerda, pode me alinhar a ela”, disse à época. Na ocasião, seu discurso exaltava a importância de uma politica de defesa do cinema como uma atividade politica estratégica. Mas, na palestra desta semana na Croisette, ele lamentou o fato de que nada avançou.

“Fala-se muito da Netflix hoje como sendo uma saída para o cinema, mas as pessoas se esquecem de que ela é uma empresa e não um projeto cultural estatal. O papel da Netflix é ter lucro e, pra isso, ela tem que investir no que dê retorno e não na defesa de um cinema voltado ao combate de ideias”, diz o cineasta, cujo filho, o também diretor Romain Gavras, lançou seu terceiro longa na Quinzena dos Realizadores de Cannes: “Le monde est à toi”, com Isabelle Adjani e Vincent Cassel. 

Ainda apaixonado pela arte de filmar, Costa-Gavras foi conferir as novidades da Europa nas telas no 71° Festival de Cannes, encerrado ontem. Esteve presente no evento já na sessão de abertura, onde aplaudiu “Todos lo saben”, do iraniano Asghar Farhadi. Atento ao que o planisfério cinéfilo anda fazendo, ele fechou sua palestra na livraria da Croisette dizendo que a ideia de autoria no cinema precisa mudar. “Houve um tempo em que cinema de autor era um cinema de resistência. Mas vimos com o tempo que qualquer filme capaz de espelhar a inquietude de seus diretores é autoral. ‘Star Wars’ é um filme de autor, por exemplo”, diz Costa-Gavras, que conta deliciosos causos de seus encontros com Yves Montand, Lemmo, Dustin Hoffman e Jessica Lange em seu livro. “Existe algo de político em qualquer narrativa cinematográfica”. 

Boa notícia para os fãs brasileiros de Costa-Gavras: o Festival Varilux de Cinema Francês, que este ano acontece entre 7 e 20 de junho, em cerca de 86 cidades do país, apresentando 20 produções da recente cinematografia francesa, vai exibir “Z”, em cópia restaurada. 

* Rodrigo Fonseca é roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ)