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Umberto Eco explica seu processo de criação em 'Confissões de um jovem romancista'

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No livro “Confissões de um jovem romancista”, de Umberto Eco, lançado este ano pela Editora Record com tradução de Clóvis Marques, estão reunidos quatro ensaios em que o ensaísta e escritor italiano, autor de “Em nome da rosa”, explica seu processo de criação. Trata-se de um conjunto de conferências que ele fez dentro do programa Richard Elmann sobre Literatura Moderna na Universidade Emory, em Atlanta. Estava com quase 77 anos e se considerava um jovem romancista, porque havia começado a escrever romances aos 48 anos, tendo antes se dedicado à Filosofia, à crítica e ao ensino de Semiologia, na Universidade de Bolonha. 

Umberto Eco nasceu em Alexandria (Itália), em 1932, e morreu em 2016, em Milão. É uma felicidade que tenha deixado estes ensaios, abrindo-nos a caixa de segredos de seu processo criativo. Logo depois que escreveu “O nome da rosa”, quando o livro estourou nas livrarias do mundo inteiro, ele não tinha muita paciência com repórteres e admiradores que indagavam “Como você escreveu este livro?”. Costumava dizer para pasmo geral que escrevera “da esquerda para a direita”. 

Mas, aos poucos, o autor de “Obra aberta”, que revolucionou nos anos 1960 a interpretação de textos literários, foi ficando mais condescendente com seus leitores. E nestes ensaios ele nos dá algumas chaves de seu processo criativo. Romance policial, o complexo “Em nome da rosa”, cheio de citações em grego e latim, levou apenas dois anos para ser escrito. Eco explica que fez uma tese de doutorado sobre a estética no período de Thomas de Aquino e, com isso, era uma espécie de expert em História da Idade Média, catedrais góticas, abadias românicas e heresias.

“Quando decidi escrever o romance, foi como se tivesse aberto um grande armário, onde vinha acumulando meus arquivos medievais por décadas. Todo material estava ali à minha disposição, e eu tinha apenas que selecionar aquilo de que precisasse”, revela o escritor em suas “Confissões”. Consequentemente, não levou muito tempo para achar o mosteiro que queria como cenário de seu primeiro romance que, além de levar em conta em sua estrutura os sete selos do Apocalipse, homenageia as novelas policiais de Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes. 

Basta lembrar que o nome do protagonista, Guilherme de Baskerville, é uma citação direta à novela de Doyle intitulada “O cão de Baskerville”.  Agora, a dupla William e Adso não é inspirada apenas em Sherlock e Watson. Um crítico mencionou Serenus Zeitblom e o músico Adrian Leverkühn, personagens do “Doutor Fausto” de Thomas Mann, e Eco reconheceu que ele estava certo. O livro, por outro lado, começa com um manuscrito. Manuscritos, comenta Eco, são uma espécie de “topos” na literatura ocidental, um lugar comum. Mas para os italianos têm outro significado. É com um manuscrito que começa o clássico romance “Os noivos”, de Alexandre Manzoni.

 Existem muitos mistérios na mente humana, e foi só muitos anos após ter escrito “Em nome da rosa” que Umberto Eco descobriu que tinha em casa uma edição da “Comédia”, de Aristóteles, que comprara num sebo e que tinha páginas coladas. Lembrou-se que sentira algo ruim ao tocar na cola, como se ela estivesse envenenada. E foi essa sensação desagradável que permeou toda a narrativa do romance passado no mosteiro medieval, no qual a biblioteca seria incendiada, ou seja, o medo que sentira ao tocar na cola nas páginas da “Comédia”, principalmente nas referentes ao Riso, medo este que ficara escondido em sua memória. 

Muito trabalho, pouca inspiração 

Umberto Eco era um perfeccionista, extremamente detalhista na construção de suas narrativas que chamava de “mundos”. Para ele, a história da inspiração era mesmo uma balela, com a construção dos livros exigindo 10% de inspiração e 90% de transpiração. Ou seja, imaginação, mas aliada a muito trabalho e suor. Falando em trabalho, o romance que lhe deu mais trabalho foi “O pêndulo de Foucault”. Levou sete anos para terminá-lo. “A Ilha do Dia Anterior” e “Baudolino” levaram quatro anos. Todos partiram de uma ideia seminal. No caso de “O nome da rosa”, a imagem que surgiu primeiro foi a de um monge sendo envenenado ao ler um livro misterioso. Houve o Aristóteles guardado na estante, mas houve também uma visita a uma biblioteca escura, no claustro de um mosteiro, no qual se deparou com uma edição enorme da Acta Sanctorum, que gerou uma forte emoção que ficaria intacta por 40 anos. 

No caso de “O pêndulo de Foucault”, a história é mais complicada. Após o primeiro romance, no qual colocara tanto de si, Eco não sabia mais sobre o que escrever. E precisava novamente de algo que sentisse que era totalmente dele, uma centelha que explodisse o processo criativo. Lembrou-se então de duas imagens. O pêndulo do cientista Léon Foucault, que vira 30 anos antes em Paris e que o impressionara muito, e a imagem dele mesmo tocando trompete no enterro dos integrantes da Resistência italiana. Sentira na ocasião o que James Joyce chamara de epifania. Pronto, tinha as ideias seminais. Iria começar o livro com o pêndulo e acabaria com um trompetista num cemitério numa manhã ensolarada. Como ir do pêndulo ao trompete? 

A resposta daria forma ao novo romance. “A Ilha do Dia Anterior” partiu da necessidade de saber se era também capaz de descrever um espaço aberto e natural, já que antes descrevera um mosteiro e um museu. No caso, a ideia seminal foi um desafio. “A Ilha” o levaria para o arquipélago Fiji no Pacífico Sul. Essas ilhas haviam sido descobertas no tempo de Richelieu e Eco resolveu começar o romance com a morte do cardeal, já que conhecia muito bem a cultura barroca e a época de “Os três mosqueteiros”. A partir daí, o romance andaria com as próprias pernas. No caso de “Baudolino”, houve inicialmente muitas ideias seminais. Até que o semiólogo italiano resolveu contar a história de um menino nascido em sua própria cidade natal, Alexandria, na Itália. Esta cidade, criada no século XII, fora sitiada por Frederico Barbarossa. Com isso, Eco tinha uma linha narrativa. Ele queria que o menino fosse filho do lendário Gagliaudo que, quando Frederico Barbaross estava para conquistar a cidade, passou-o para trás com uma mentira ou trapaça. 

“Baudolino” também estava vinculado a outra imagem. Fascinado por Constantinopla, Eco há muito tempo queria visitar a cidade. Tendo como argumento um livro que narrasse parte da história da civilização bizantina, teria um bom motivo para visitar Constantinopla. E assim o fez, tendo explorado a superfície da cidade e as camadas inferiores, e descoberto o pontapé inicial da história: a cidade sendo incendiada pelos cruzados em 1204. “Juntando Constantinopla em chamas, um jovem mentiroso, um Imperador germânico e alguns monstros asiáticos, temos um romance. Admito que não parece uma receita muito convincente, mas para mim funcionou”, conta Eco.

 O escritor italiano era maníaco por detalhes. Para construir seu mundo narrativo, fazia pesquisas exaustivas e fichas. Ele tinha que VER os cenários onde seus personagens estariam. Chegou a desenhar plantas baixas do mosteiro, do museu, do navio em “A Ilha”. E também desenhava os personagens. No caso de “O pêndulo”, passou várias noites dentro do Conservatorie de Ars et Métiers em Paris, onde transcorreriam os principais acontecimentos da história. Para descrever a caminhada noturna de Causabon do Conservatoire à Place de Voges e seguindo até a Torre Eiffel, passou “várias noites percorrendo a cidade entre duas e três horas da manhã, ditando num gravador de bolso tudo que conseguia ver, para não se equivocar com nomes de ruas e cruzamentos”. Quanto à Ilha, teve que ir aos Mares do Sul, “à exata localização geográfica em que se passa o romance, para ver as cores da água e do céu em diferentes  horas do dia, a tonalidades dos peixes e corais”. E também passou “dois a três anos estudando desenhos e modelos de navios do período”. 

Nem todos os escritores são tão exigentes. Mas assim era Umberto Eco, que em seus ensaios nos fala muito mais a respeito de literatura, não abordando apenas seus próprios livros. Aprendemos com ele por que choramos copiosamente pelo fato de Anna Karenina, personagem fictício, ter se jogado nos trilhos de um trem, enquanto que muitas vezes as lágrimas não descem com tanta força quando morre um ente querido. Acontece que Anna Karenina, por viver no mundo da narrativa, é eterna. Ela sempre estará lá, no livro de Tolstoi. Identificamo-nos com ela, com sua tragédia de mulher amorosa que se afasta do filho por causa do amante e depois se vê repudiada por este mesmo amante, Vronski, homem fútil e vaidoso. Mesmo que o mundo acabe e apenas um marciano leia o livro, Anna estará se jogando nos trilhos de um trem. 

Outro tema que Umberto Eco aborda, e que não posso deixar de citar, são as listas criadas pelos escritores. Listas de palavras, imagens, metáforas. Enumerações de coisas, pessoas, lugares, animais, visões, que podem ser caóticas ou não. As primeiras que o impactaram foram as de Rabelais, em “Gargantua”, e as de James Joyce em “Ulisses”, quando Leopold Bloom abre uma gaveta na cozinha cheia de objetos disparatados. Também menciona o escudo mágico de Aquiles, forjado por Hefesto e presenteado ao guerreiro por sua mãe Tétis. Homero concebeu várias cenas no campo e de batalhas, em várias estações, todas elas em  movimento no tempo e no espaço, como se fossem uma visão lisérgica ou em 3D.  Depois, cita “O Aleph” de Borges – um ponto vertiginoso numa escada que visava a fazer com que o leitor viajasse no infinito das imagens - e as listas que ele mesmo, Eco, criou em “O nome da rosa”, “O pêndulo de Foucault”, “A Ilha do Dia Anterior” e “Baudolino”. No caso da “Ilha”, a lista foi de peixes e corais com as formas mais inusitadas. Listas, observa Umberto Eco ao término do livro, nascem do prazer de ler e escrever. E do amor pelas palavras, diria eu.

• Confissões de um jovem romancista 

• Umberto Eco 

• Tradução: Clóvis Marques 

• Páginas: 154 

• Preço: R$ 39,90