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Paradigma do tempo

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Imagine se fosse possível uma dobra no tempo, onde as versões jovem e idosa da mesma pessoa ocupassem o mesmo espaço e tempo? A história que permeou o livro “Quase memória” do  jornalista e escritor Carlos Heitor Cony (1926-2018), lançado em 1995, ganha as telas sob a direção de Ruy Guerra. Semi-biográfico - fala sobre a relação de Cony com seu pai -, a trama também carrega algo pessoal do diretor de 86 anos. “Foi a questão afetiva do livro que me atraiu. Tive um pai que era muito maluco, quase me matou várias vezes”, conta Ruy. 

O diretor ressalta que é a forma em que o tempo é abordado o que mais interessa nessa nova produção. “Nele, o tempo está fora de seus paradigmas, apontando para várias especulações no âmbito da fantasia e até da ciência, que tem teorias sobre universos paralelos”, sugere. 

Na história, o  jovem Carlos (Charles Fricks) se encontra consigo mesmo, velho (Tony Ramos). Até que, numa discussão entre lembranças e esquecimentos, recebem um pacote que só poderia ter sido enviado por seu pai, morto há anos. “É o cara mais velho que está lembrando ou o mais novo que está prevendo seu futuro? Tudo pode ser uma alucinação, um delírio ou uma projeção de expectativas”, provoca o diretor moçambicano que vive no Brasil desde 1958 e dirigiu 14 filmes. 

A produção traz ainda no elenco João Miguel e Mariana Ximenes, respectivamente Ernesto e Julieta, pais do personagem Carlos, Antonio Pedro (Capitão Giordano),  Flavio Bauraqui (Seu Ministro) e Julio Adrião (Mario Flores). Com uma estética onírica, o diretor lança mão de fotografia com cores fortes e interpretações não-naturalistas, quando quer mostrar o núcleo das memórias, contrastando com o embate dos dois Carlos, sempre entre sombras e diálogos ríspidos. “Ele realmente tem uma estética diferente, mas não concordo quando o classificam como teatro filmado. É só ter um filme mais falado que interpretam como teatral! Não há como o cinema imitar o teatro e vice-versa”, opina.  

Dentro dessa interessante estética, há um relógio que, volta e meia, surge para marcar uma temporalidade dramática. Como se reforçasse o questionamento do espectador de quanto mais pode durar aquela situação inusitada. Outra cena que chama a atenção é a de uma reunião familiar numa mesa de jantar, filmada de cima. “A filha pequena de Paulo Caldas (diretor pernambucano para quem deu depoimento para o documentário ‘Saudade’) fez um desenho onde pessoas sentadas numa mesa olhavam para cima. Lembrei daquela imagem durante as filmagens e decidi usá-la na cena. São duas perspectivas: uma em 90 graus e outra com eles deitados, onde trabalhamos com lentes diferentes e recursos no cenário para alcançar esse resultado, que é bem semelhante à perspectiva de uma criança”, conta Ruy. 

“Quase memória” é de 2015 e só está sendo lançado agora. Ruy, que estreou nas telas em 1962 com o hoje cult “Os cafajestes”, ficou 12 anos sem filmar. Seu longa anterior foi “O veneno da madrugada”, premiado nos festivais de Brasília, de Havana e de Santa Cruz de la Sierra. Ele lamenta, dizendo que “filme brasileiro não tem distribuição nem espaço para exibição”, mas nunca desiste. “Nesses mais de dez anos entre um filme e outro, escrevi quatro roteiros. O primeiro, que estou chamando por enquanto de ‘Palavras queimadas’, começo a filmar no segundo semestre. Tem o ‘Tempo à faca’, sobre vingança, o policial ‘Fingidor’, que se passa no universo de Fernando Pessoa, e o último da trilogia de ‘Os fuzis’ (1964) chamado ‘Fúria’ (o segundo foi ‘A queda’, de 1977)”, conta Ruy.