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Em nome da justiça

Kore-eda volta às telas com um suspense de tribunal

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Escalado para concorrer à Palma de Ouro em Cannes (de 9 a 18 de maio) com “Shopliflers”, uma comédia sobre um clã de trambiqueiros, o diretor japonês Hirokazu Kore-eda já é de casa. Freguês da Mostra de São Paulo, onde já visitou com pompas de convidado de gala, ele é louco para fazer um filme sobre a colonização nipônica no Brasil e sabe que, toda hora, tem um filme novo dele em nossas telas. Dramalhões como “Ninguém pode saber” (2004) e “Pais e Filhos” (2013) lotaram cinemas no circuito nacional de arte. O trabalho mais recente dele a aportar por aqui, nesta quinta-feira, é “O terceiro assassinato” (“Sandome no satsujin”), um suspense de tribunal indicado ao Leão de Ouro de Veneza, onde foi considerado um óvni na tradição de melodramas desse cineasta nascido em Tóquio há 55 anos. 

Medo e tensão no novo filme

Acostumado a falar de abandonos, desapegos e conexões afetivas, ele investe aqui no medo e na tensão. “Esse filme surgiu a partir de uma conversa com um amigo advogado, que me contou o quão difícil é lidar com a ideia de ‘verdade’ nas cortes japonesas: muitos crimes, lá, não são decididos por culpa ou inocência, mas por conveniência. Os conflitos de interesse regem as nossas leis”, disse Kore-eda durante o Festival de San Sebastián, na Espanha, em setembro, onde o longa foi ovacionado. 

“Pensei num enredo onde alguém decidisse usar a corte para fazer valer a veracidade dos fatos e não as convenções sociais ou morais do meu país. Existem questões de classe e existem questões da Justiça”. Quem busca o juízo mais preciso e honesto acerca da realidade em “O terceiro assassinato” é o advogado Shigemori (Masaharu Fukuyama), um jurista de talento duvidoso que se deixa reger pela curiosidade ao defender Musumi (Koji Yakusho). O suposto criminoso tem um histórico carcerário violento, tendo sido condenado duas vezes. Mas o delito de número três em seu histórico de crimes está cercado de uma certa inconstância, de mistério. Há uma conexão direta com a questão do arrependimento, tema recorrente da estética intimista de Kore-eda, cuja obra premiada vai ser debatida hoje, às 20h30, no Reserva Cultural, de Niterói. O debate, organizado pela Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ), reúne a diretora teatral Livs Ataíde e o jornalista Francisco Carbone.

“Meus filmes, todos eles, são focados na condição humana, e este não é diferente”, diz Kore-eda. “Eu acabei sendo rotulado como diretor de folhetins porque passei anos tentando pensar as inquietações afetivas pelo prisma familiar, porém, mesmo nesse terreno do melodrama, eu abordo questões sociais. A abordagem do Direito em ‘O terceiro assassinato’ passa por um olhar sociológico. Foi assim que eu aprendi a fazer cinema: rodando documentários para a TV acerca de dilemas cotidianos de nossa sociedade. O que há de novo aqui é um design de dramaturgia diferenciado, mas no tempo do suspense”.

Em Veneza e em San Sebastián, a crítica europeia saiu surpresa com o domínio que o diretor tem das ferramentas da cartilha da ficção jurídica. “Eu consultei advogados na confecção do roteiro e fiz com que eles construíssem uma espécie de inquérito para o acusado. E era eu quem deveria responder. Talvez o acerto nesse longa venha de algo que herdei de meus tempos no documentário: a atenção aos detalhes”, diz o cineasta. 

A partir de 1995, quando estreou na ficção com “A luz da ilusão”, Kore-eda dirigiu onze longas pautados pela invenção, e fez mais um punhado de documentários e telefilmes. Poucos diretores são mais prolíficos de que ele, laureado com 38 prêmios internacionais por seu feitos nas telas. Ele já foi comparado a um dos mais festejados cineastas de seu país, Yasujiro Ozu (1903-1963), de “Dia de outono” (1960). Mas ele tem outras referências entre diretores autorais: de um lado, o inglês Ken Loach (de “Eu, Daniel Blake”) e, do outro, seu conterrâneo Mikio Naruse (“Correnteza”), ambos cronistas da luta de classes. “Mas a influência mais ativa em mim eram os filmes com as atrizes Ingrid Bergman, Joan Fontaine e Vivien Leigh de que minha mãe gostava”, disse Kore-eda. “Vi a maioria deles na TV, porque não tínhamos dinheiro para pagar ingressos. Hoje, meus pais já se foram. Eu virei pai. E cultivo as lições sobre as lacunas que ausência de pessoas amadas deixam em nós. A ausência da verdade também gera lacunas”.

*Rodrigo Fonseca é roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ)