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Cinema: programação

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Don Quixote das Américas

RODRIGO FONSECA* Especial para o JB *

Múltiplas peças, a partir de “Baal Babilônia” (1993), fizeram de Carlos Felipe Lopes Werneck Hirsch um dos mais necessários encenadores do teatro brasileiro. Filme, ele só dirigiu um e em parceria com a colega cenógrafa Daniela Thomas: o rizomático “Insolação”, de 2009. Mas há um espetáculo dele que dialoga de maneira mais direta - mais até do que seu longa-metragem anterior - com “Severina”, o mais recente exercício desse diretor pelas veredas do cinema: a montagem de “Temporada de gripe”, de 2003. Nela, a partir de um texto de Will Eno, temos um ambiente hospitalar, num futuro sem emoções, onde um homem sem nome é internado com uma estranha doença: a paixão.

Há um sintoma temático - e autoral - similar ao dessa peça no longa que Hirsch lança agora, filmado no Uruguai, em espanhol, numa troca criativa com o produtor do momento (Rodrigo Teixeira, de “Me chame pelo seu nome”). A paixão também adoece o protagonista desta inquietante história sobre Quixotes pós-modernos: bibliófilos que dão aos livros autonomia plena sobre sua existência, até uma Dulcineia de carne, osso e caráter duvidoso aparecer. No caso, Ana (Carla Quevedo), enigmática mulher cuja perversão é roubar livros e amolecer suas vítimas com sorrisos homicidas. O hospital aqui é uma Alexandria de esquina: uma livraria lotada de tesouros verbais.

Há aqui, nas garras de Ana, um Cavaleiro da Triste Figura, só que mais realista do que o nobre de La Mancha esquadrinhado por Cervantes: chama-se R. e olha para o mundo com a ressaca dos que escondem gigantes sob a forma de moinhos de vento no peito. R. é vivido por Javier Drolas, ator argentino, que é um livreiro e um rascunho de escritor, que ganha a vida da prosa alheia: vendendo romances e devorando poesias e ensaios. E tem direito a um Sancho Pança sem “mais valia” marxista: o amigo poeta vivido por um agrisalhado Daniel Hendler, o astro de “O abraço partido” (2014).

Magnética, a presença de Hendler costura pra dentro de “Severina” mais referências cinematográficas da América Hispânica ainda. E a chave é esta. É um filme sobre o imaginário literário e amoroso de um continente hablante da língua de 0: mas um imaginário que tenta transcender o melodrama. Não estamos diante de um folhetim regado a lágrimas, estamos, sim, numa América Latina de veias abertas, fria, cujas lágrimas secaram diante da falência econômica. Essa reflexão sobre a palavra como lugar de resistência chega ao roteiro de “Severina” a partir de uma conversa direta com a obra do escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa (autor de “Os surdos”). Essa conversa vira imagem a partir da fricção entre as reflexões existenciais de Hirsch e a mirada que o fotógrafo português Rui Poças (do ótimo “Zama”) tem sob a intimidade alheia. Juntos, diretor e fotógrafo atualizam a metáfora de Quixote para os nossos dias discutindo sobre a ilusão pelas vias do entorpecimento artístico e do confronto sem escudos com a realidade. 

* Rodrigo Fonseca é roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeir o (ACCRJ)

O quebra-cabeças emocional

FRANK CARBONE Especial para o JB *

Hong Sang-soo talvez seja o cineasta mais ativo da atualidade, com uma média crescente de filmes por ano. Em 2017, foram três e a previsão também é de três para 2018, um fôlego invejável. Inevitavelmente, seus longas bebem em sua realidade particular para ecoar a encruzilhada que une o banal e o extraordinário através do modo como ele realça esse mesmo banal, com a lupa que cede ao espectador para observar suas irônicas entranhas, para acabar vendo um espelho de si mesmo. Desde que aportou pela primeira vez no Brasil com ‘Hahaha’, sua marca foi sentida e o circuito simplesmente atendeu a demanda de ignorá-lo cada vez menos, e com os longas seguintes deixou sua assinatura assimilada e criou uma espécie de séquito em seis anos.

Ano passado, ele criou uma trilogia fechada, ao mesmo tempo que é muito difícil não afirmar que todos os seus longas estão ligados. Mas de fato há um plus de interligação entre “Na praia a noite sozinha”, esse “O dia depois” e “A camera de Claire” (que estreia em julho). A ciranda dos três filmes é vivenciada em conjunto, com seus personagens coabitando os espaços uns dos outros, interagindo nas histórias alheias e sendo fundamentais, enquanto experiência coletiva - ainda que não estejam ligados nominalmente, são desdobramentos possíveis das mesmas personalidades e atores.

Embora cada um dos filmes funcione unitariamente, o mosaico criado pelos ecos que os une é de degustação suave, ainda que suculenta. Sang-soo tem um conceito claro por trás do seu cinema de reconstrução de afetos, como se fosse possível um aprimoramento dos encontros a partir do choque, e dali nascesse uma nova via; enfim, um artesão das chances, tão novas quanto mundanas. 

O protagonista Bongwan (um inspirado Hae-hyo Kwon) já tinha dado as caras em ‘Na praia...’, justamente na emblemática cena do jantar. Lá, ele estava visivelmente alterado e um pouco bêbado, talvez transtornado com os eventos que ocorrem aqui, que envolvem sua esposa, sua amante e sua nova secretária, um jogo de erros cujo pavio é aceso e vai implodindo as relações entre homem/mulher, da forma como Bongwan as concebia. Ainda que pareça continuamente num looping de rodar sempre as mesmas narrativas, com o mesmo jogo cênico, os mesmos atores e as mesmas propostas de zigue-zague entre o poder da reinvenção ordinária e a beleza do cotidiano, Sang-soo constrói uma filmografia onde cada novo longa é um integrante da mesma família, em constante crescimento para formar o quadro maior e revelar sempre mais sobre as banais relações humanas.

*Frank Carbone é membro da ACCRJ.

Um olhar sobre o mal do século

ANA RODRIGUES* Especial para o JB Nos primeiros minutos de “Aos teus olhos”, a lente revela uma imagem distorcida. É uma alegoria do que virá adiante. Rubens, professor da turma de natação infantil, é acusado pelos pais de um aluno de beijar o menino na boca. A mãe da criança no estilo “atirar antes de perguntar” compartilha a acusação em redes sociais. A mensagem viraliza, ganha versões e o professor vira réu de um “tribunal” de conclusões instantâneas com apenas um click.

Presente no dia a dia de bilhões de pessoas no planeta, as redes sociais, que servem para compartilhar informações e fazer mobilizações, prometiam ser um local democrático de divulgação. Hoje, viraram alvo de pesquisa de psicólogos e psiquiatras, devido à compulsão, tratada como doença do século XXI. 

A diretora Carolina Jabor e o roteirista Lucas Paraizo desenvolveram uma narrativa universal, livremente inspirada na peça espanhola “O princípio de Arquimedes”, de Josep Maria Miró. A história acontece numa cidade brasileira, mas poderia ser em qualquer lugar do mundo. Tema similar de pré-julgamento social foi abordado de modo brilhante, em 2012, no dinamarquês “A caça”, de Thomas Vinterberg. 

Em “Aos teus olhos”, o menino Alex (Luiz Felipe Mello, em desempenho perfeito), que contou aos pais que teria sido beijado pelo professor, carrega rancor e sofrimento com a incomunicabilidade dos pais separados. O garoto é incapaz de lidar com o fracasso na prova de natação e num suplício por atenção, faz o relato.

O longa não se propõe simplesmente a fazer um filme investigativo sobre a denúncia. Há indícios da inocência do professor Rubens, mas a proposta vai além dando conta do desamor familiar, dos julgamentos precipitados, da intolerância disseminada por gente supostamente “de bem” que usa as redes de modo compulsivo e irresponsável. 

Daniel de Oliveira impressiona como professor Rubens, politicamente incorreto e pré-julgado. Marco Ricca é o pai duro e machão do menino desesperado por atenção. A relação do personagem com a ex-mulher e o filho merecia mais nuances. Vencedor de quatro prêmios, incluindo de melhor longa de ficção pelo voto popular no Festival Internacional do Rio 2017, “Aos teus olhos” é um farol sobre temas fundamentais que precisamos discutir fora do lacre das redes sociais.

* Ana Rodrigues é membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ)

Distanciamento emocional sci fi

OCTAVIO CARUSO* Especial para o JB 

O diretor japonês Kiyoshi Kurosawa é especialista em explorar os limites dos gêneros, subvertendo expectativas, algo que faz com inteligência em “Antes que tudo desapareça (Sanpo suru shinryakusha)”. Analisado no contexto de sua filmografia, o projeto entrega uma nova tese sobre a importância da reconstrução constante dos sentimentos que alicerçam os relacionamentos amorosos. 

Ele já tocou no tema pela perspectiva do horror e do thriller policial, mas opta desta vez pela moldura fantástica das invasões alienígenas, buscando inspiração nos clássicos norte-americanos da década de 1950: “A ameaça que veio do espaço” e “Vampiros de almas”. Na trama, três extraterrestres se infiltram na sociedade, inclusive um que utiliza o corpo de um jovem como hospedeiro, para o choque de sua esposa.

O objetivo é compreender melhor a raça humana, seus hábitos diários e suas motivações emocionais, para que uma possível invasão futura venha a acontecer sem maiores problemas. O toque genial do roteiro é fazer com que estes seres necessitem utilizar poderes psíquicos para extrair conceitos que não consigam entender, como o amor, a possessividade, trabalho e família. Ao esvaziar um personagem de seu sentimento de posse com relação à sua casa, os bens materiais, o alienígena enxerga a irrelevância daquilo, enquanto a vítima descobre a felicidade desacorrentada dos grilhões de status social, empolgada com as possibilidades desta nova experiência.

A frase que sintetiza a mensagem do diretor nasce na cena menos pretensiosa, uma simples conversa que pode passar despercebida na desnecessariamente longa duração do filme. “Humanos são engraçados, acreditam que governam seu planeta. Mesmo que não invadíssemos, vocês morreriam daqui a uns cem anos”. A ideia de que a destruição da raça humana, ou a reinvenção deste conceito a partir do zero, pode ser tida como benéfica é, por trás da fantasia metafórica, extremamente contundente. Temos que reaprender os sentimentos mais básicos, como empatia. Kurosawa atinge o ponto nevrálgico, um alerta de proporções mundiais cada vez mais atual, apesar de optar no terceiro ato por um viés melodramático exagerado, que enfraquece o resultado.

* Octavio Caruso é cineasta e crítico de cinema

Entretenimento assistível

TONY TRAMELL* Especial para o JB *

O novo filme de Dwayne Johnson (“Jumanji” ) é a adaptação de um antigo videogame lançado em 1986. “Rampage: Destruição total (Rampage, 2018)” é um filme B de grande orçamento, com monstros e o sempre carismático Dwayne Johnson. O público fã de filmes como “King Kong Vs Godzilla”, ”Círculo de fogo (Pacific Rim)” e os primeiros “Transformers” irá ao deleite diante dessa trama, que traz três monstros geneticamente alterados causando destruição por onde passam. 

A produção, dirigida por Brad Peyton, está longe de ter a eficácia do cinema catástrofe de “Terremoto: A falha de San Andreas”, que também tinha Dwayne Johnson como protagonista e conseguia se manter sem oscilações. Era uma versão moderna de um gênero e nada mais. Entretanto, conseguia manter um ritmo crescente que prendia a atenção. “Rampage: Destruição total” é incapaz de se manter fiel a sua origem. A começar pelos monstros, no jogo eram humanos que sofreram mutação, enquanto na versão cinematográfica são animais. Fator que nem seria problema grave para uma adaptação, mas, se no jogo era necessário destruir uma cidade para passar de fase, apesar dos ótimos efeitos de computação gráfica, temos apenas alguns prédios e muita destruição restrita a humanos e equipamento militar. A destruição total do jogo, fica apenas restrita ao título nacional.

Davis Okoye (Dwayne Johnson) é um primatologista, que prefere lidar com animais do que com seres humanos, e tem uma forte ligação com o gorila alpino George. Quando um experimento feito no espaço (para burlar as leis estadunidenses) dá errado, uma chuva de meteoritos atinge a Terra, trazendo pedaços do experimento que realiza a mutação. Aqui começam os problemas do roteiro. Lizzie passa de jacaré a uma espécie de versão dinossauro com guelras, um lobo passa a ter nove metros e sensor de morcego, além da capacidade de voar, e George, o gorila, só aumenta um pouco de tamanho e fúria.

O filme não perde uma linha tentando explicar porque George não é tão afetado. Assim como abandona o elo dramático existente entre Davis e o Gorila, que poderia ter sido amplamente explorado na computação gráfica, estabelecendo uma empatia maior com a plateia. O mesmo vale para um outro Gorila que, no começo do filme, ganha algum destaque, mas que rapidamente some da trama. “Rampage: Destruição total” é uma sequência de ação quase atrás da outra, com doses de humor, e monstros se enfrentando e causando destruição. As cenas de violência causam impacto, felizmente não foram feitas para agradar as crianças e, assim, combinam com o estilo do videogame. Tudo é muito bem feito, já que se trata de uma superprodução, o que ajuda a evitar que o filme seja bombástico. É ultrajante e exagerado em muitos momentos, exige descrença da realidade (deve ser um pré-requisito para quem vai ver filme de monstros) e o diretor sabiamente se cercou de um elenco talentoso.

Além do carisma de Dwayne Johnson (ele é convincente tanto nas cenas de ação como nas cenas de humor) e o talento de Jefrey Dean Morgan (o Negan da série de TV “The walking dead”), que tem a oportunidade de mostrar um lado mais leve que o seu clássico personagem da TV, traz as atrizes Malin Akerman (da série “Billions”), como vilã da corporação que pesquisa a mutação e Naomie Harris (indicada ao Oscar de atriz coadjuvante por “Moonlinght”), como uma ex-funcionária responsável pela mutação. Ambas conseguem espaço para demonstrar suas habilidades na tela. Esses elementos que ajudam a tornar o longa em um entretenimento assistível.

* Tony Tramell é jornalista