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'É Tudo Verdade' abre nova edição com filme em tributo a Hugo Carvana

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Irreverência costumava ser a palavra precisa para definir Hugo Carvana de Hollanda - fosse como ator, como cineasta, como torcedor do Fluminense, como cronista da vida boêmia ou como gente – até ele cometer a deselegância de deixar este mundo, em 2014, sem pedir licença ao nosso afeto. Aí, para se referir a ele, é preciso falar em “saudade”. Não é por acaso, portanto, que irreverência e saudade se misturam no documentário batizado apenas de “Carvana”, a ser exibido ná próxima quinta, às 19h, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM), inaugurando a 23ª edição do É Tudo Verdade, o maior e mais prestigiado festival da América Latina dedicado ao real. O evento este ano se concentra no Instituto Moreira Salles (IMS), até o dia 22, e no Estação Net Botafogo, até o dia 18, abrindo seu menu na telona do MAM, regado a litros de emoção, como carta de amor ao realizador de comédias tipo “A casa da Mãe Joana” (2008). Há neste filme-afago de Lulu Corrêa (diretora-assistente de Hugo nos sets de 1996 a 2013) imagens raras de seu documentado nos bastidores de suas filmagens, destacando sua lealdade aos amigos.     

“Eu comecei a fazer filmes ainda na era das chanchadas e depois caí numa fase muito politizada, em que o cinema parecia bula de remédio, pois os diretores diziam ‘Meu filme é bom pra acabar com a reforma agrária... meu filme é bom pra derrubar a ditadura... meu filme é bom pra isso... meu filme é bom praquilo’. Os filmes que eu dirigi só são bons para deixar as pessoas felizes. Eu comecei na chanchada. Aprendi a filmar pra levar alegria às pessoas”, disse Carvana ao JB, um ano antes de morrer, no lançamento de seu último longa, “A casa da Mãe Joana 2 (2013). “Eu gosto de patota, turmas, amigos... e as histórias que eu conto falam sobre isso. Ninguém dorme num filme meu, porque eles celebram a alegria. Eu faço meus atores trabalharem muito no meu set. Eu concentro a energia, filmo muito, canso todo mundo... mas ninguém sente o cansaço, ninguém reclama, porque existe integração, camaradagem e amor pelo cinema”. 

Nascido em 1937, Carvana dizia que era “um ator de câmera”, por se sentir mais à vontade com a energia do audiovisual do que com a força dos palcos. Estrelou filmes seminais de nossa cinematografia, como “Os fuzis” (1964), de Ruy Guerra, e iniciou, em 1973, com “Vai trabalhar, vagabundo” uma trajetória de milhões de espectadores e dezenas de prêmios no papel de cineasta. Foi selecionado, com seu longa de estreia, para o Festival de Taormina, na Itália, onde ganhou o prêmio principal. Levou ainda o Kikito de Melhor Filme em Gramado, em 1974. Na TV, fez personagens antológicos, entre eles o lendário repórter Valdomiro Pena da série “Plantão de polícia” (1979) e o milionário Lineu Vasconcelos de “Celebridade” (2003-2004).   

“O amor à vida e o compromisso coma democracia eram aspectos centrais do modo de ser de Hugo nos sets e reviver esse jeito dele, revendo material de arquivo, com ele em ação, foi muito doloroso, pra mim, no início da concepção de ‘Carvana’. Eu chorava, ria e, às vezes, ficava quietinha ouvindo suas palavras, para matar a falta que ele faz”, diz Lulu Corrêa, que concebeu o longa como uma espécie de autorretrato. “Comecei a filmar com o Hugo em ‘O homem nu’ e nunca nos separamos. Fui percebendo, a cada encontro, o quanto ele aprendeu como cada um dos grandes cineastas com quem filmou, sempre movido pela paixão pelo cinema”. 

Este é o primeiro ano que o MAM sedia a cerimônia de inauguração do evento. “É simbólico que esta parceria inédita, na abertura do ETV, tenha o Carvana como figura central, pois, além de toda a contribuição dele como ator e diretor para nossa história, ele foi um carioca com orgulho”, diz Ricardo Cota, curador da Cinemateca do Museu. “Ao relembrar os feitos dele, o É Tudo Verdade acaba homenageando nossa cidade e a sua história”.   O longa de Lulu Corrêa será exibido também na sexta, dia 13, às 18h, no Estação. 

Em São Paulo, o É Tudo Verdade começa no dia 11, com uma projeção, no auditório do Ibirapuera, de “Adoniran – Meu nome é João Rubinato”, de Pedro Serrano: um retrato do pilar do samba paulista. Participam da Competição Internacional de Longas e Médias-metragens  12 produções estrangeiras, a exemplo de  “Sammy Davis, Jr.: Eu tenho que ser eu”, de Sam Pollard (EUA). 

Apesar da ampla oferta de filmes em concurso, o título mais esperado do evento entra fora de competição, movido a polêmicas, a inquietações e ao prêmio de júri popular que conquistou no Festival de Berlim, em fevereiro: “O processo”, de Maria Augusta Ramos, sobre o julgamento que levou ao impeachment de Dilma Rousseff. O novo longa da diretora de “Justiça” é construído a partir de quase 400 horas de material filmado dos trâmites legais que conduziram Dilma para fora do Planalto. A edição do projeto, assinada por Karen Ackerman, é um marco da montagem no cinema nacional.  

Labaki faz um balanço do painel documental 

Toda segunda-feira, quem zapeia o Canal Brasil por volta das 22h, tem um encontro marcado com Amir Labaki, crítico de cinema, escritor e curador da maior maratona documental da América Latina: por essa hora, começa “É Tudo Verdade”, faixa de programação homônima ao festival, na qual ele apresenta, semanalmente, um filme brasileiro. Muitos deles são inéditos, como é o caso de “Cora Coralina – Todas as vidas”, do diretor Renato Barbieri, que a emissora a cabo exibe amanhã, com comentários de Labaki. O programa é um reflexo de uma missão estética que ele encampou em 1996, quando fundou o ETV, com o objetivo de popularizar o documentário no Brasil. Atualmente, o evento tem uma ponte direta com a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood e garantiu a Amir honrarias como a de participar do júri do Festival de Cannes em 2016. Na época da fundação do É Tudo Verdade, anos antes de o programa ir ao ar, havia apenas um punhado de filmes inscritos e a participação nacional era irrisória. Hoje, 22 anos depois, há centenas de títulos à disposição, sendo que 55 foram reunidos em diferentes mostras. Confira a seguir as impressões de Labaki sobre as transformações do cinema em relação à realidade:    

Jornal do Brasil: Existe alguma tônica na técnica ou na dramaturgia da produção documental brasileira dos tempos de hoje que se imponha com mais destaque e volume no É Tudo Verdade? 

Amir Labaki: Genericamente, eu diria que há um predomínio dos herdeiros da estética do Cinema Direto (linhagem de documentários que suprimem a intervenção do diretor em relação ao objeto) turbinado pela revolução técnica do digital. 

JB: Depois de 22 anos fazendo o festival, já há experiência para julgar o quanto o documentário passou a fazer parte do imaginário cinéfilo e a mudar a saúde financeira da indústria. Como está a situação da produção documental no Brasil e no mundo? 

AL: Nunca antes o documentário ocupou posição mais destacada no cenário audiovisual, aqui, ali e em todo lugar. A equação financeira ainda não foi resolvida, mas o reconhecimento estético jamais foi maior. O estado das coisas do documentário, no Brasil e no mundo, é robusto, ainda que mercadologicamente ainda exista muito a conquistar. 

JB: De que maneira nossa ficção atual carrega influências dos experimentos documentais que o cinema nacional vem fazendo? Que ficções brasileiras conseguem impressionar um olhar como seu, tão lapidado pelo real? 

AL: A hibridização me parece marcante sobretudo na jovem ficção, como comprova um dos destaques de 2017 por aqui, “Gabriel e a Montanha”, de Fellipe Barbosa. Infelizmente, estrou atrasado quanto a safra ficcional do ano passado, da qual guardo especial interesse em recuperar “Vazante”, de Daniela Thomas, e “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans. 

JB: Qual é o simbolismo ético e estético de ter o polêmico (e premiado) filme “O Processo” na seleção? 

AL: É uma afirmação do poder do documentário como forma de expressão autoral. A obra de Maria Augusta Ramos reafirma-se como das mais coerentes e rigorosas do cinema brasileiro.

*Rodrigo Fonseca é roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ)