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20 mil léguas submarinas a bordo das memórias de Jacques Cousteau

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Em suas duas primeiras semanas em cartaz na França, num período de forte concorrência com superproduções hollywoodianas, o drama biográfico “L’odyssée” contabilizou cerca de 800 mil ingressos vendidos à força do fascínio que seu personagem central, o oceanógrafo e documentarista Jacques-Yves Cousteau (1910-1997), ainda exerce entre os europeus (e não só eles),  mesmo após duas décadas de sua morte.

Cineasta e marinheiro, ganhador de três Oscars e de uma Palma de Ouro por filmes como “O mundo silencioso” (1956), Cousteau construiu uma obra que serviu como um atlas para os mares do mundo, mexendo com o imaginário de gerações de cinéfilos ao longo de 52 anos de cinema. Sua figura bronzeada, sempre de touquinha vermelha, virou uma referência de coragem e de amor pela natureza, tornando-se um pioneiro dos discursos ecológicos.

Com estreia no Brasil agendada para esta quinta-feira pela Esfera Filmes, com o título de “A odisseia”, esta reconstituição (com múltiplas licenças poéticas) dos feitos do desbravador de oceanos, dirigida por Jérôme Salle (do thriller policial “Zulu”), foi uma das produções mais caras do cinema francês nas últimas décadas: custou cerca de 20 milhões de euros. Jornais da Europa apostavam em cifras ainda mais altas (35 milhões de euros), à época de seu lançamento internacional, no encerramento do Festival de San Sebastián de 2016, onde recebeu um prêmio especial do Greenpeace por sua discussão ecológica.

O investimento alto se justifica pela tecnologia de captação de imagem usada nas profundezas do mar durante as filmagens, realizada entre 7 de setembro de 2015 e 8 de janeiro de 2016, em águas na Antártica, nas Bahamas, na África do Sul e em ilhas do território croata.

“Muita gente que faz cinema na França se apaixonou pela linguagem audiovisual, a partir das experiências feitas por Cousteau com a linguagem documental”, disse Jérôme Salle ao JORNAL DO BRASIL, em entrevista na Espanha, à época da estreia do filme. “Mais do que um tributo a ele, “A odisseia” presta homenagens à linhagem do documentário ecológico, de contemplação da natureza, cuja potência estética costuma ser menosprezada pela crítica e por estudiosos em geral. Apesar da dimensão política que carregam, ao falarem sobre a manutenção do meio ambiente, filmes como os de Cousteau são importantes também como exercícios narrativos, como experimentos fotográficos. Meu cinema se faz a partir de viagens pelo mundo, de encontros com outras culturas. Foi uma lição que aprendi com os docs do mar deste homem fascinante que dedicou sua vida à preservação da fauna marinha”.

Com uma bilheteria estimada em 1,2 milhão de espectadores apenas em seu país de origem, “A odisseia” conta com um dos mais populares atores da França em seu papel central: Lambert Wilson, o Merovigian da franquia “Matrix”, conhecido por suas parcerias com cineastas como Alain Resnais (“Medos privados em lugares públicos”) e Bertrand Tavernier (“A princesa de Montpensier”). Coube à eterna Amélie Poulain, Audrey Tautou, encarnar Simone, a mulher de Cousteau, sempre incomodada com a ausência e com as traições dele.

“A curva heroica que tentei traçar na jornada de Cousteau só se mantém de pé por conta da força feminina de Simone: ela é a medida do vigor criativo dele, o parâmetro de suas vitórias. Por isso, eu precisei de uma estrela como Audrey, que entendesse as diferentes complexidades dela”, disse Salle, lutando para dissociar a composição de Lambert de qualquer proximidade com a homenagem bufona feita a ele por Bill Murray em “A vida marinha de Steve Zissou” (2004), de Wes Anderson.

Ali, Murray vive uma versão caricata do oceanógrafo. “Existem diferentes retratos de Cousteau no imaginário dos franceses e do cinema mundial. A dificuldade maior é encontrar uma perspectiva que dê conta da importância de seus feitos como investigador da biologia do mar e como contador de histórias, a partir das ferramentas que tinha, nos anos 1940 e 50, para fazer filmes documentais”, disse Salle.

Um dos primeiros diretores de documentário a ganhar prestígio popular internacional, celebrizando-se como uma espécie de popstar do filão, com sucessos de bilheteria nos cinemas e fenômenos de audiência na TV, Cousteau é abordado em “L’odyssée” como uma figura intrépida, de êxito também como inventor, na criação de aparelhos de mergulho mais velozes e confortáveis do que os escafandros da Marinha.

Sua carreira cinematográfica é marcada por longas como “Mundo sem sol” (1964) ou “Du grand large aux grands lacs” (1982). Mas o interesse do filme de Salle é entender a relação entre Cousteau, Simone e seu filho, Philippe, vivido por Pierre Niney, a bordo do Calypso, embarcação na qual o explorador do oceano vivia suas aventuras aquáticas. “Temos melodrama, temos algo de trágico, mas temos, na frente de qualquer gênero, um homem que fez diferença na luta para usar o cinema em prol da documentação da geografia do mar”, disse Salle. “Se as pessoas saírem do meu filme e forem ao Youtube atrás dos documentários de Cousteau, meu objetivo estará alcançado”.

* Rodrigo Fonseca é roteirista e presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ)