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Jornalismo e ficção em João Antônio

Projeto de retratar personagens das classes baixas se beneficiou da atividade do escritor 

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Obscurecido nos últimos anos de sua vida, tanto por uma atitude de recolhimento quanto pelo interesse menor por seus livros nos meios culturais, o escritor paulistano João Antônio (1937-1996) vem sendo redescoberto em estudos acadêmicos. Alguns dos mais recentes se detêm na fase de quase ostracismo do autor, em que ele se dedicou mais ao trabalho na imprensa do que à ficção. Para a pesquisa de pós-doutorado “Corpo a corpo com o Brasil: Os dilemas da identidade nacional em João Antônio”, realizada no Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), o pesquisador Júlio Cezar Bastoni da Silva fez um amplo levantamento da produção jornalística do escritor.

Bastoni estudou com maior profundidade aspectos do projeto literário do autor pesquisados parcialmente antes, relativos à presença do trabalho jornalístico como elemento inspirador da ficção, não só no aspecto temático, mas também na busca de uma dicção que aproximasse sua escrita da fala dos personagens. Como literato, João Antônio Ferreira Filho, que teve uma infância pobre no bairro onde nasceu, Presidente Altino, em Osasco (então ainda não desmembrado da cidade de São Paulo), conheceu o sucesso aos 26 anos com o livro de estreia, a reunião de contos Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), e manteve o prestígio com Leão de chácara (1975), situação que perdurou até meados dos anos 1980.

Sua atuação na imprensa começou quase ao mesmo tempo. Desde meados dos anos 1960 foi repórter de publicações como o Jornal do Brasil e as revistas Claudia, Realidade e Manchete. Em Realidade, publicou em 1968 aquele que é considerado seu primeiro conto-reportagem: “Um dia no cais”, incluído no livro Malhação do Judas carioca (1975) com o título reduzido para Cais. O conceito de conto-reportagem, explica Bastoni, foi formulado pela equipe da revista para caracterizar os textos de João Antônio. Uma fase até aqui menos estudada de sua atuação na imprensa é aquela em que, além de manter o posto de cronista em O Globo, Jornal do Brasil e Tribuna da Imprensa, também atuou na imprensa alternativa em títulos como O Pasquim, Versus e Movimento. Bastoni usou como fontes o arquivo pessoal do escritor, hoje no Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, o Arquivo Ana Lagôa da UFSCar e publicações regionais de Campina Grande, Curitiba, Porto Alegre, entre outras cidades.

A fase em que as fronteiras entre ficção e jornalismo ficam mais porosas coincide, para o escritor Bruno Zeni, com a maturidade literária da obra de João Antônio. Um dos aspectos que embasam essa ideia está presente no livro recém-lançado Sinuca de malandro – Ficção e autobiografia em João Antônio (Edusp), derivado da tese de doutorado apresentada em 2012 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Zeni procurou a figura paterna em toda a produção do escritor, depois de perceber que “as relações dos protagonistas com seus pais são sempre problemáticas”. Além dos contos e crônicas do autor, Zeni também se debruçou sobre as cartas guardadas no acervo da Unesp e na pesquisa do escritor Rodrigo Lacerda “João Antônio: Uma biografia literária: Os anos de formação”, com a qual obteve o doutorado na FFLCH em 2004 e que inclui entrevistas com familiares do contista paulistano e alguns de seus interlocutores mais frequentes.

Zeni considera que a figura do pai, quando aparece claramente nos contos, corresponde a protagonistas tão decididos quanto violentos. Quando os textos tematizam a ausência paterna, ao contrário, o tom é de melancolia e os personagens não sabem bem para onde ir – marca da fase tardia do escritor. Zeni interpreta essa mudança como a perda da necessidade de competir com o pai. “Foi muito bom para a literatura dele passar de uma chave ficcional para outra que não tem paralelo nem em sua própria obra nem na tradição da literatura brasileira.” Para o pesquisador, não se trata mais de conto-reportagem, porque “a informação jornalística desaparece, dando lugar a uma combinação de relato pessoal, reflexão, ensaio histórico, crônica de época e perfis de personagens desimportantes”. “O próprio João Antônio não se dava conta de ter criado uma forma nova que ainda precisa ser estudada em profundidade”, acrescenta.

Levando em consideração a produção jornalística e retomando a leitura da ficção do contista, Bastoni detectou a presença, em toda sua obra, da busca de uma expressão autêntica – até mesmo de uma “substância” literária – que representasse a identidade brasileira. “De seu primeiro livro até Dama do encantado e Sete vezes rua, ambos do ano de sua morte, João Antônio pensou a identidade nacional ligada à representação das camadas populares brasileiras, que ele chamava de ‘povo’ ou ‘povão’”, afirma.

O pesquisador identifica a existência de uma “integração entre a produção artística nacional e o interesse intelectual pelas classes subalternas como uma constante do romantismo à arte política da década de 1960”. A obra do contista daria continuidade à procura por esse substrato literário, mas também significaria “um salto à frente na cultura nacional-popular da década de 1960”, representada por dramaturgos como Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), o poeta Ferreira Gullar (1930-2016) e o romancista Antonio Callado (1917-1997).

Em boa parte da obra desses escritores encontram-se personagens politicamente conscientes e engajados em uma perspectiva revolucionária. Já a obra de João Antônio não compartilha o compromisso com a militância. No lugar de trabalhadores organizados, seus personagens são malandros, jogadores de sinuca, bicheiros, pequenos criminosos, mendigos, prostitutas, moleques de rua.

João Antônio também não se inclui na abordagem do elemento popular que marcou a produção literária brasileira seguinte. “Ele é uma espécie de transição entre a cultura nacional-popular, própria dos tempos das políticas nacionalistas de Getúlio Vargas ou João Goulart, e a voga da violência urbana que veio a seguir”, diz o pesquisador, referindo-se à literatura de Rubem Fonseca. “Nas novas narrativas surge um Brasil do impasse, marcado pela não resolução do problema da desigualdade.” Para Bastoni, a obra do contista exemplifica uma das transformações da literatura brasileira em fins do século XX: o momento em que a identidade nacional deixa de ser tomada como prioridade.

Apesar de a análise de Bastoni colocar a literatura de João Antônio numa posição aparentemente isolada, o próprio escritor evocava a companhia de escritores como Ignácio de Loyola Brandão e Antônio Torres, citados por ele no texto “Corpo-a-corpo com a vida”, ensaio que encerra o livro Malhação do Judas carioca e é uma espécie de manifesto que o pesquisador tomou como guia para recuperar o projeto do escritor. Segundo Bastoni, o texto “evidencia a contiguidade entre seus textos de teor jornalístico e literário”. Tanto assim que João Antônio menciona os nomes dos escritores norte-americanos Truman Capote e Norman Mailer, expoentes do “novo jornalismo”, escola que usava técnicas literárias de ficção na produção de reportagem. “O que o interessava nesses autores era a relação estreita entre realidade e literatura, embora os textos de João Antônio não se assemelhem, em temática ou estrutura, aos do novo jornalismo.”

A proposta do ensaio, afirma Bastoni, é que a literatura seja uma experiência compartilhada entre autor e objeto. “Em miúdos”, escreve, “quer-se evitar o fosso entre intelectual e classes subalternas”. Trata-se, segundo ele, de uma proposta estética imbuída de uma ética – o objetivo de intervir na realidade pela via da denúncia.

Para tanto, o escritor buscou uma forma brasileira para seus textos, que se traduz na estilização da fala dos personagens marginalizados. Bastoni compara esse aspecto do estilo de João Antônio à elaboração da dicção sertaneja efetuada por João Guimarães Rosa (1908-1967), algo já notado anteriormente por Antonio Candido. “Não se trata apenas de uso de gíria e jargões do submundo urbano, mas de uma estilização que cria uma sintaxe particular”, diz o pesquisador. Segundo ele, a “mútua fecundação entre jornalismo e literatura” se faz notar mais claramente na produção publicada em livro depois de 1975, ano do lançamento do ensaio-manifesto. A partir daí, prevalece uma hibridez de gêneros em que “o texto oscila entre descrição e narração e destes passa à digressão”.

Entretanto, Abraçado ao meu rancor, livro de 1986, traz uma mudança profunda de visão de mundo. “O senso de fracasso torna-se muito presente na obra do contista”, diz Bastoni. O fracasso da esperança numa emancipação do povo brasileiro após o fim da ditadura militar, de uma ideia unificadora da identidade brasileira e também do próprio projeto literário do escritor. João Antônio admite, então, não reconhecer mais a cidade de São Paulo de sua juventude, nem os personagens a quem sempre se dedicou. Queixa-se do aumento da “brutalidade da exploração capitalista do Brasil” e do surgimento de poderosas facções criminosas que em nada lembram o pequeno traficante que retratou em seus relatos ficcionais.

Embora por outro viés – o da recriação das experiências de vida do escritor, incluindo a repercussão de seus escritos –, Rodrigo Lacerda vê a obra de João Antônio dividida em três momentos. No primeiro, em que a linguagem se apresenta mais seca e enxuta, a população urbana proletária constitui o seu universo temático. Numa segunda fase, ele recebe a influência do regionalismo à la Guimarães Rosa, que lhe dá a forma para recriar a linguagem de seus personagens, com dicção “mais abundante”, “criando uma musicalidade que não havia antes”. A última etapa seria marcada pela combinação entre jornalismo e literatura. Para Lacerda, o contista chegou a “uma equação literária que era também financeira” quando percebeu que não era possível viver de literatura. “Ele então preferiu fundir literatura e jornalismo, porque assim podia publicar em jornal textos escritos do jeito que queria.”

À parte a presença de um pai consanguíneo nos escritos de João Antônio, há também a de uma espécie de pai literário, o escritor Lima Barreto (1881-1922), a quem ele dedicou todos os seus livros, exceto a primeira edição de Malagueta, Perus e Bacanaço. Para Bastoni, trata-se de uma relação de continuidade “não exatamente formal, mas ética e, em certo sentido, temática”. Segundo ele, “João Antônio via Lima Barreto como um pioneiro na representação do povo brasileiro dos subúrbios, pobre e marginal, além de também ter tido papel importante na imprensa da primeira metade do século XX”. João Antônio escreveu a biografia “parajornalística” (na expressão de Bastoni) Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, que terá este ano, pela editora 34, sua primeira reedição desde que foi lançada, em 1977. Ainda neste ano, o homenageado da Festa Literária de Paraty (Flip) será Lima Barreto, o que deverá trazer reforços à redescoberta de João Antônio.

*Pesquisa FAPESP