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Nélida Piñon lança "Filhos da América" na Travessa do Shopping Leblon

Em livro de ensaios, acadêmica escreve sobre suas origens e influências literárias

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Carioca de Vila Isabel, Nélida Piñon confessa que só recentemente descobriu o sambista de seu coração: o paulista Adoniran Barbosa. “Mestre da oralidade. Um criador que ousou mencionar o nome Iracema, seu grande amor, como pretexto para esclarecer que perdeu o retrato da amada, e dela só restou um sapato. Eu teria dado anéis e brincos para ter escrito esta frase”, escreve a autora, em “Heródoto e a aprendiz Nélida”, que abre seu novo livro, de ensaios, “Filhos da América”. Neste texto que é quase a introdução para um testamento de sua vida e obra, Nélida discorre sobre suas origens, as influências literárias que marcam as suas narrativas ficcionais, a inspiração na família e amigos para criar seus personagens e, entre outras, a relação que mantém com a sua dupla cultura: a brasileira e a galega:

“(...) Incorporo à minha genealogia romanesca um infindável número de personagens, transeuntes, vizinhos, todos à deriva. Sou muitas, múltipla. (...) Cada palavra, cada cena, cada confidência arrasta uma memória cujos efeitos me perseguem. O conjunto de vivos e de mortos é um fardo. Mas o que fazer com meus cúmplices? Não os posso trair. Menciono seus segredos, os retalhos de suas vidas, em algum parágrafo, sem dar seus nomes, que dissolvo. Libero-os, portanto, da responsabilidade de haverem pecado ou se omitido.” (páginas 15 e 16).

Nos 28 textos que compõem a seleta, Nélida escreve ainda sobre Machado de Assis e José de Alencar, escritores que ela considera como dois dos principais intérpretes do Brasil na literatura, sendo Machado o que se sobressai, inclusive em outros ensaios do livro; perfila a atriz Marília Pêra, exalta a escrita de Rachel de Queiroz, saúda a chegada de Antônio Torres à Academia Brasileira de Letras e, entre outros temas, homenageia a amiga Carmen Balcells, que morreu em 2015 e foi agente literária dos maiores escritores da América Latina, entre eles os também amigos de Nélida Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar. Neste que também é um livro sobre memória, Nélida rende tributos à literatura ibero-americana, passeia por sua Galícia da infância e a que restou na vida de seus parentes que com ela vieram para o Brasil, recorda os caminhos que a levaram a escrever livros como “A república dos sonhos”, sobre imigração, e “Vozes do deserto”, sobre as narrativas árabes, que tem Scherezade como protagonista.

Primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, a partir de 1997, Nélida foi uma menina criada com liberdade de escolhas, que, aos dez anos, convenceu um lojista do Rio a lhe vender uma máquina de escrever, dizendo que o seu pai a pagaria em breve; que decidiu ser escritora para contar as histórias acumuladas durante a vida, mas que valoriza os afazeres da casa, cuidando da comida, de Suzy e Gravetinho, seus cães e companheiros, e aventurando-se nas panelas de vez em quando, quando recebe amigos para confraternizações. No ensaio “A longa jornada”, ela presta uma homenagem a todas as mulheres, dizendo que elas, alijadas da cultura normativa, acumularam “um saber clandestino de grande valia, do qual os narradores dependiam para se apossar dos personagens e frequentar o enigma literário”, lembrando que são coautoras de escritores como Homero, Dante, Shakespeare, Cervantes e Camões. Também fala de si no já citado ensaio que abre o livro:                      

“As lições da infância são sempre libertárias. Induziram-me a resistir apesar dos empecilhos pessoais e históricos. Do fato de ser brasileira e mulher ao mesmo tempo. Quando, lembro-me bem, algumas vozes pregaram que me acautelasse, não me apegasse aos limites mortíferos que as fronteiras e os gêneros estabelecem. Ainda hoje sufoco os sussurros que me advertem renunciar à paixão que nasce da vida e da literatura. Mas sou valente, o que temer agora que me aproximo do fim?”                     

Sempre em viagens pelo país e pelo mundo, recebendo homenagens, discursando, dando aulas, participando de eventos, Nélida exercita o seu dom ensaístico e narrativo na vida e na escrita. Grande contadora de histórias e exímia ouvinte, a autora circula por todos os ambientes, desde as esquinas de seu bairro até os salões mais nobres, recolhendo da vida e da relação com as pessoas memórias que transbordam em seguida para a sua escrita. Este livro é, portanto, um registro de suas experiências, saberes e investigações sobre a arte, a cultura e as pessoas.