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"Rainha", Samba & ilusão: cinema-batucada

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Rainha, o novo curta da diretora Sabrina Fidalgo poderia ser compreendido quase como uma parábola neo-realista das armadilhas, alegrias e mistérios que envolvem o universo do samba na cultura do Rio de Janeiro. Tem batuque, candomblé, desilusão, trapaças, sexo, drogas e batucadas.

Tomando como fio condutor esse segmento, o instigante roteiro compõe um panorama social (e quase onírico) das comunidades que se expressam nas quadras das escolas. Se hoje o samba é tratado como espetáculo de massa, vale lembrar que sua origem é uma extensão das alforrias escravagistas do começo do século passado. Os primeiros agrupamentos rítmicos que deram origem ao termo “samba” eram estigmatizados, concentrados em núcleos pequenos e, muitas vezes, perseguidos pela repressão policial daquele tempo. Da casa de Tia Ciata --e das primeiras composições de Donga-- ao sambódromo foi preciso lutar contra muita opressão e preconceito cultural. O samba venceu? Sim e não, como “Rainha” mostra em cerca de 30 minutos.

Por imagens densas e belas (fotografadas em preto e branco por Julia Zakia),e carregadas de certo lirismo que ainda emana das quadras de samba,irrompem cenas que pedem reflexão.  A aparente ingenuidade do ritmo das baterias e tambores oculta jogos de poder, protecionismos, favorecimentos, dirigentes autoritários, cocaína como aditivo da “diretoria” corrompida, mais o cotidiano de estruturas sociais confinadas historicamente a bairros de classes de baixa renda. O que acontece por lá, só as comunidades sabem. A televisão mostra o samba glitter, o samba para inglês ver, o samba que favorece o enredo-espetáculo. A diversão do ritmo no pé e a estética extasiante que tanto encantava o artista plástico Hélio Oiticica nos anos 1960, acabaram por se diluir nos mesmos valores que se antagonizavam nos primórdios do samba.

Entretanto, o filme de Sabrina Fidalgo não é documental, nem pretende fazer análises sociológicas. É uma ficção que valoriza a cultura afrodescendente por intermédio de olhares poéticos e de uma narrativa com registros de melancolia, preconceito racial e desencantos. O cinema da diretora carioca tem o poder de trazer lucidez, estridências, denúncias, religiosidade e inquietação. Tudo ao mesmo tempo.

A mãe que pede em iorubá que Iansã proteja sua filha e que, assim, ela consiga ser escolhida rainha da bateria. Mas a proteção da entidade considerada Rainha dos Raios não a faz se tornar rainha da escola tão facilmente. Rita, a protagonista (atuação surpreendente da atriz Ana Flavia Cavalcanti), é obrigada a se conformar.

Sem entretanto sucumbir ao desânimo, a personagem tenta se aprimorar fisicamente a cada ano.Afinal, ser uma rainha da bateria é garantia de projeção social e de imagem destacada pelas emissoras nas transmissões dos desfiles carnavalescos. Entretanto, a esse esforço de vencer, surge uma gang de garotas brancas e violentas (como sonho ou realidade, cabe ao espectador fazer a sua interpretação), que trazem a intenção de agredir a garota negra que deseja ser “rainha”.

“Rainha” traz o impacto da tristeza que tanto permearam o cinema neo-realista italiano (clara inspiração da diretora), mais algumas pitadas existencialistas de “A Noite” (de Michelangelo Antonioni). O filme de Sabrina Fidalgo nos faz emudecer com o finalde forte impacto e melancolia. O samba nem sempre nos faz contentes, o samba exige luta, o samba desmorona. A rainha sonhou? Cinema é ilusão, é poesia, é sonho, é projeção. A realidade fraturou, a realidade fustiga, a realidade jubila, a realidade nos leva a terras incógnitas. Salve, rainha.

Sabrina Fidalgo, é filha dos artistas Ubirajara e Alzira Fidalgo.  “Rainha” é seu sexto curta-metragem.Estreará no Rio de Janeiro dia 4 de novembro na sessão das 21 horas do Panorama Carioca do Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro - Curta Cinema. O filme também abre a nona edição do Encontro de Cinema Negro África, Brasil e Caribe - Zozimo Bulbul.

“Rainha” estreou em julho de 2016 no Festival Ver e Fazer Filmes, em Cataguases (MG), com outros filmes vencedores do edital de curta-metragens do Projeto Usina Criativa de Cinema. Ganhou os prêmios de Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Som e Melhor Figurino. 

Ainda neste mês de outubro, Sabrina Fidalgo fala sobre romantismo no cinema, na décima edição da Semana de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. E em 1 de dezembro será a cineasta homenageada no "Programa Tela Preta", do curso de cinema da UFF, quando serão exibidos quatro dos seis curtas que já realizou: "Black Berlim"(2009), “Cinema Mudo” (2012), "Personal Vivator"(2014) e "Rainha"(2016).

Importante ainda destacar a sua participação em debates sobre o papel da mulher no cinema, como em "Mulheres em Cena" (CCBB-RJ), ao lado de cineastas brasileiras como Lais Bodanzky, Adélia Sampaio e da chilena Marialy Rivas.

Entre outros encontros de relevo que Sabrina Fidalgo participou nos últimos meses está o debate realizado no mês de setembro ultimo pela Fundação Ford,  em parceria com o Festival de Cinema de Brasília e a Secretaria de Cultura do DF.Chamou-se “Produção Audiovisual, Identidade e Diversidade – Um olhar dos Realizadores Afrobrasileiros e Indígenas Sobre o Cenário Brasileiro do Audiovisual” que sacudiu as estruturas do mais antigo festival de cinema no Brasil.

* Especial para o JB