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Comunidades caiçaras mantêm tradições em Paraty

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“Moro em Paraty/Embora Lula presidente/Aqui quem manda é o polvo/Fruto do mar é a gente”, diz o poeta Flávio de Araújo. De família de pescadores, desde o bisavô, diz ser um tipo de lobisomem, pois é o único escritor vindo da Praia do Sono. “É uma comunidade caiçara que mantém suas raízes, só chega de barco ou por trilha”, explica Flávio. “Ai, que preguiça!”*, diria Macunaíma, herói sem caráter criado por Mario de Andrade, autor homenageado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

Pode ficar tranquilo, Mário, em Paraty, que é o nome de um peixe, como diz o poeta lobisomem quem manda é o polvo: “Sai de banda baiacu/Olhudo eu mostro o linguado/mando lamber sururu”. Ele garante que aprendeu a lição do modernista: “O Mário sempre bateu na tecla de que o brasileiro tem muito a mostrar, desde o movimento de 22, a Semana de Arte Moderna, ele focava que o que temos aqui é tão importante como qualquer movimento que existe lá fora”, conta. “A gente começa a pintar a própria casa para depois dar cor ao mundo”, completa.

Os índios tupis-guaranis chamavam de caá-içara os currais de galhos fincados na água para cercar os peixes. Espalhada, a população da cidade reúne 40 mil habitantes e um quarto vive em área rural – muitas comunidades quase isoladas pela dificuldade de acesso.

As histórias ouvidas do pai, que pescava do Espírito Santo até o Uruguai, Flávio colocou no papel para garantir a passagem para a próxima geração. “Não são mentiras, são maravilhas. Do mar se conhece bem pouco. A gente hoje conhece mais a superfície de Marte do que o mar”, compara.

Indo para outras bandas, à distância de duas horas de barco, a saída para Mamanguá é na calada da madrugada, antes do sol pintar o céu de cor-de-rosa. “Ai, que preguiça!”*. Entre o mar e as montanhas, com casinhas e barquinhos cá e acolá, vendo o sol nascer, “por enquanto, o que mais me parece é que tanto a natureza como a vida destes lugares foram feitos muito às pressas, com excesso de castro-alves”*.

Nascida pelas mãos de sua avó Rita, a última parteira de Mamanguá, Érica de Oliveira cozinha em casa de família. Ela voltou para a escola depois de 17 anos longe da sala de aula. “Ficou difícil continuar estudando porque tinha que pegar o barco e ir para a cidade, aqui só tinha até a 4ª série”. Com o projeto Azul Marinho de educação para jovens e adultos, já se arrisca nos versos de cordel e reflete: “Nasci em um lugar onde só se chega de barco ou pelo ar, e se você acha que é puro isolamento, depende do ponto de vista que você olha”.

Em Mamanguá, a paisagem remetia aos relatos de Mário em O Turista Aprendiz: “O céu estava negro de nuvens que não se resolviam a chover sobre a terra e, apenas do lado do poente, uma nesga de céu limpo deixava uns últimos raios do sol focalizarem, para efeitos da fotografia que encima estas evocações, a igreja e as casas da sua direita, no imenso largo vazio”.*

A conversa com Deus está garantida em Mamanguá. Na assembleia, os encontros são às terças e quartas, aos sábados e domingos. Tem também a reza do poeta lobisomem: “Creio no pirão de gonguito [pequeno bagre do mar] com banana bacubita. Na roça de feijão-guandu, na cepa de mandioca de sete ramas, no doce de cana-caiana, no limão em puxa-puxa.”

Em Paraty-Mirim, cidade vizinha a Paraty, na praia quase deserta, quem guarda as canoas e recepciona as visitas são quatro cachorros vira-latas. Crianças saem do barco e pegam o caminho para a escola – meio trilha, meio escada, na terra batida e nas pedras. Luara Mariana, de 9 anos, mora no vilarejo do Funil. “Acordo às 5h da manhã, me arrumo, pego o barco, daí quando chega lá na praia pego o ônibus e vou pra escola. Fico na escola de 7h até 11h15, depois volto pra casa”, conta. Ela tem duas irmãs.“Onde eu moro só tem duas crianças, a gente brinca às vezes. Lá não tem praia, só tem mangue, não dá para brincar.”

Na escola caiçara, seu Alonso é o zelador. Ele pendura um pedaço de rede de traineira, uma das lições aprendidas pelas crianças. Diz que era pescador, mas cansou. “A vida no mar é muito dura”, mas tem momentos de boniteza: “o sol nascendo pode olhar que não estraga a vista”.

Estamos de volta à cidade. Lá o pedreiro Marcos tira uma Paraty da rede no cais dos turistas. “Jogo uma tarrafinha só para pegar um peixinho pra mim mesmo”. Aqui quem manda é o polvo. “Não é todo mundo que pesca não, mas eu gosto, levo um peixinho pra casa.”

No cais dos pescadores, o barco Natália aporta ao lado de Esperança. O capitão é seu Valdir Vitorino, que já foi mais longe que todos os outros companheiros de arrasto. “O primeiro daqui a botar o pé em Cabo Frio fui eu”, orgulha-se. Aos 69 anos, pesca desde os 13. Se passou os ensinamentos do mar para a próxima geração da família, ele é enfático na resposta: “Não! É tudo menina! São professoras, a Natália é a mais nova, a do meio é Maria Antônia e a mais velha é Silene, que também é o nome da minha lancha de passeio.”

Antes de sair às 3h de domingo, é bom seu Valdir invocar a reza do poeta lobisomem: “Creio na canoa de voga, no cerco na espia, no espinhel preso à poita [objeto pesado usado como âncora], na rede de minjuada no lagamar”. A semana vai ser dura no mar e a pesca só termina na sexta-feira.

Mas nem só de frutos do mar vive Paraty. Da terra, Valdevino dos Remédios tira os frutos do sustento no assentamento em São Roque, área rural de Paraty. Cupuaçu, cacau, fruta-pão, mandioca. Fundador do Mercado do Produtor, só quer plantar sua roça. “Tem muita gente que é contra a lavoura, mas a gente não é contra o meio ambiente. A gente tem que preservar as águas, a natureza, a floresta. Se tirar a floresta, seca as águas. O pessoal do meio ambiente não entende que pode plantar uma roça de banana. Se tirar o pessoal eles vão pra onde? Levar os filhos e netos pro meio da violência?”

Paraty tem muito para ser aprendido, uma semana não dá. E, como na viagem de Mário de Andrade, “no geral, foram oito horas de trabalho. Nunca menos e bastantes vezes mais”*.

*inspirado em O Turista Aprendiz e outras obras de Mário de Andrade