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Crítica de teatro: "A Oréstia"

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É errôneo pensar que o início da ideia de representação de caráter teatral se deu com o surgimento da tragédia e do tipo de edifício conhecido como théatron na Grécia. Na verdade, antes disso, já haviam aparecido representações baseadas no canto e na dança, nas quais o trabalho corporal era um elemento da maior importância. A teatralidade existia, exprimia-se até como espetáculo, mas a criação dramática (de drama, que em grego significava ação) nasceu para a pólis e suas festividades, dentro de um sentido religioso e social, na época facilmente percebido através do simples contato imediato com a obra.

O público que há mais ou menos dois mil e quinhentos anos comparecia às festividades políticas para ver os grandes espetáculos trágicos vivia em total integração com os valores que haviam gerado aquelas peças, nascidas, por sua vez, da própria religião e de seus cultos.

Assim, as antigas tragédias eram apresentações longas, com texto em verso, que envolviam canto e dança.  Ao longo de sua existência, os trechos musicados e dançados foram sendo reduzidos para que o espaço das personagens crescesse e, desse modo, o debate de ideias e o choque de personalidades começasse a prevalecer.

Poesia, música e dança eram inseparáveis e serviam à religião e à organização social da pólis grega. Hoje, porém, esse fundamento pleno, total e absoluto se perdeu. Montar um texto trágico, em termos contemporâneos, significa, quase sempre, resgatá-lo como parcialidade, pois o fundamento pleno, total e absoluto dado pela religião, do qual a política se apropriou na época, desapareceu e se tornou indevassável em termos de apreensão imediata.

O interesse que a tragédia desperta hoje, de certo modo, vem responder à nossa exigência do mito, do reconhecimento de que, mesmo em termos contemporâneos, de certa maneira, ainda nos atrai pensar a aventura humana como parte de um universo sobrenatural, que a razão não consegue desvendar completamente.  Se a tragédia expressa a verdade dos valores fundamentais da comunidade que a criou, com seu caráter de celebração coletiva, que põe à mostra aquelas crenças que religavam entre si os membros da sociedade, hoje ela nos faz olhar com nostalgia para um universo que era habitado por um sentido dado pela ordem transcendental.  Os heróis míticos que viam unicamente em si mesmos a medida das coisas, que acabavam por desafiar os preceitos e as hierarquias que lhes eram superiores, acabavam punidos.  A personagem trágica vive no momento em que se conhece a crise do divino.  Na Grécia,  tanto Édipo quanto Agamêmnon ou Orestes representam essa humanidade que inicia um processo de imersão num mundo em que o indivíduo pretende se sobrepor a toda e qualquer ordem.  Mas eles estão ainda na encruzilhada, no momento de realizar as escolhas e de pagar por elas.  Suas trajetórias nos remetem, assim, à reflexão sobre liberdade e livre arbítrio. 

 A ORÉSTIA encenada por Malu Galli e Bel Garcia

O primeiro problema que se coloca quando se monta uma trilogia como Oréstia, na qual o papel do coro ainda resulta bastante representativo, é a quantidade de atores que formam o elenco. A opção das encenadoras pelo trabalho com um número reduzido de intérpretes, que são, ao mesmo tempo, coro, corifeu e personagens, exige por parte do público não iniciado um conhecimento prévio do texto e do material que ele aborda. Com isso, a apreensão do espetáculo torna-se ainda menos imediata. Por exemplo, as tentativas de modernização da postura do coro, que usa microfone e aparece como uma espécie de “backvocal” em seu figurino e coreografia, apesar de trazerem certo impacto sonoro e corresponderem plenamente ao objetivo de criar uma ponte com a expressividade contemporânea, afastam de vez a plateia de uma compreensão mais plena do sentido original que tinha esse núcleo na tragédia.

A tradução de Alexandre Costa e Patrick Pessoa funciona razoavelmente bem no jogo cênico, mas carece, em parte, da poesia de outras versões. Os cortes realizados privilegiam o movimento da ação, o que proporciona um ritmo mais vibrante ao todo; no entanto, perdem-se, de certo modo, os detalhes da bela construção poética de Ésquilo. 

O elenco tem, em geral, bom rendimento, com destaque para Malu Galli e Júlio Machado, nos duplos papéis de Agamêmnon/Clitemnestra e Orestes/Electra. A transformação de Agamêmnon em Orestes realizada por Machado resulta um dos momentos marcantes do espetáculo.  Daniela Fortes se destaca pelo ótimo trabalho corporal. Otto Jr. e Gisele Fróes apresentam, dentro da concepção das encenadoras, uma leitura pós-moderna dos deuses Apolo e Atená, sendo que a proposta da direção para o primeiro é menos bem sucedida.  Luciano Chirolli esforça-se para dar credibilidade sozinho às Fúrias, no que é bem sucedido,  principalmente devido ao potencial de sua voz. 

O cenário, de Afonso Tostes, é escuro e abstrato, com dois níveis que separam os diferentes espaços da ação.  Apesar de o tamanho do palco não ser dos mais adequados, a montagem utiliza-se também do ambiente da plateia, ampliando a movimentação.  Os figurinos, de Cláudia Kopke e Marina Franco, seguem os tons escuros do cenário, mesclando elementos contemporâneos com referências de época.  A iluminação de Maneco Quinderé abraça o que é proposto pela direção de arte, mantendo a cena imersa numa meia penumbra, na qual se destacam com intensa dramaticidade as personagens.

A música de Rômulo Froes e Cacá Machado transforma o texto de Ésquilo em letra para canções, com o intuito de trazer a poesia trágica para o ritmo atual, ousadia coerente com outras escolhas da encenação.

Como o propósito de Malu Galli e Bel Garcia enquanto encenadoras é construir um espetáculo que trabalhe com a linguagem pós-moderna, na qual a paródia é um recurso muito usado, aparece, em determinados momentos, uma mistura de tons (solene e cômico) na abordagem interpretativa, que em nada se relaciona ao original.  Não há comic relief na tragédia esquiliana.  Contudo, ainda que essa postura se afaste por completo do paradigma trágico de Ésquilo e de seu contexto histórico, ela acaba por fazer sentido dentro do objetivo proposto pelas encenadoras que é, de certo modo, o de realizar um discurso secundário, cuja função seria, mais propriamente, comentar a obra, em vez de tentar mostrá-la a partir de uma originalidade primordial.

Outra escolha da direção que se alinha bastante  às opções da arte pós-moderna, e também moderna, é o trabalho com a colagem, quando se insere no julgamento ficcional de Orestes um julgamento real, onde parte do público vota a favor ou contra a condenação do filho de Agamêmnon.  No espetáculo ao qual assistimos, o voto de parte da plateia foi pela condenação, ao contrário do resultado que aparece no texto da tragédia, em que o herói é absolvido pelo voto decisivo de Atená.  No entanto, a aparente proposta de ruptura da chamada quarta parede, que amplia os limites da ação, inserindo-a na realidade, como costuma acontecer, acaba por resultar num retorno à postura fechada, na qual os espectadores permanecem passivos (o resultado da decisão do público em nada muda o curso do espetáculo).   

Como dizia Paul Claudel, quando trabalhava em sua tradução de As Coéforas, o coro constitui a principal dificuldade da representação dos dramas antigos tais quais foram escritos.  No Brasil do século XXI, essa questão que preocupava o poeta francês parece ter perdido sua urgência.  Hoje se faz tragédia para um público iniciado, inserindo-a, sem problemas, dentro de uma expressividade contemporânea.  O que se ganha com isso?  Liberdade.  E o que se perde com isso?  Perspectiva histórica.

O princípio de comunicação instalado nas tragédias obviamente se deteriorou com o tempo.  Contudo, ainda que hoje se faça uma apreensão meramente parcial de seu todo, a riqueza ali encontrada ainda permite aos encenadores proporcionar uma experiência compensadora ao público.  No caso da Oréstia que, no momento, ocupa o palco principal da Casa de Cultura Laura Alvim, o significado do debate a respeito dos valores da mãe versus os do pai, no qual se refletiria a disputa entre uma memória matriarcal arcaica e o advento do patriarcado como fundador de uma nova ordem política, se mantém.  No entanto, o sentido religioso daquela aventura acaba por ser desperdiçado.