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A Semana de Arte Moderna - mito e história

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 Este ano  comemoram-se os noventa anos da Semana de Arte Moderna, marco inicial do nosso Modernismo,  realizada nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Como acontece em todas as datas redondas, diversos lançamentos somam-se ao extenso legado de obras consagradas ao tema. 1922: a semana que não terminou, de Marcos Augusto Gonçalves, editorialista e repórter da Folha de São Paulo, reconstrói, na linguagem fluente e ágil do jornalismo,  o contexto e os preparativos para o evento, além de destacar os momentos mais importantes e traçar um perfil dos protagonistas, tudo amparado em ampla investigação, enriquecida por excelente iconografia.  

Apesar de não haver uma preocupação em reavaliar criticamente a Semana, as informações reunidas pelo autor permitem preencher certas zonas de sombra, ao propiciar maior nitidez sobre as relações entre os autores modernistas e a elite paulista, num processo paradoxal que instituiu o modernismo não como ruptura, mas como um jogo conciliatório com o conservadorismo que supostamente o movimento deveria combater. Se na Europa a arte moderna precisou conquistar terreno à margem dos salões oficiais, no Brasil veio à cena “pela via oficial e conduzida pela mão do poder”.

As duas partes iniciais do livro concentram-se em apresentar os preparativos da Semana. Só na reduzida parte final o autor descreve o que de fato ocorreu nos três dias considerados decisivos para a arte brasileira.

Os anos anteriores a 1922 viram nascer uma insatisfação com a literatura no Brasil. Toda a tradição realista, naturalista, parnasiana e simbolista sobrevivia como fantasmas disputando um território abandonado. O contato com a cultura europeia - realizado por intermédio da leitura de textos inovadores, por meio das viagens de Anita Malfatti, Graça Aranha, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, entre outros, e pela vinda para o Brasil de artistas europeus, como Brecheret - expunha o fosso que afastava nossos autores do amplo movimento de renovação estética proposto pelas vanguardas. Essa percepção manifestou-se na polarização entre futurismo x passadismo, pois o primeiro termo, posteriormente renegado, possuía então uma significação muito mais vasta, representando a ruptura com o atraso e com a tradição acadêmica. O fato de Mário de Andrade rejeitar o rótulo de “futurista” tanto significou um afastamento da proposta de Marinetti, quanto assinalou um caráter complacente em relação à tradição criticada. 

Ao abordar as relações com a tradição na gênese da Semana, o autor é bem preciso: “Se havia negação na atitude polêmica e agressiva do grupo, a estética prendia-se ainda ao passado. E o evento, programado para gerar repercussão, parecia combinar muito bem com os interesses da elite paulista de autovalorização histórica e hegemonia intelectual”.

Não há como fugir à força da Pauliceia, à presença do ufanismo paulistano. A Semana foi trabalhada desde o início por intelectuais paulistas, com a ajuda de representantes da burguesia cafeeira, sob o influxo de Paulo Prado, misto de escritor e empresário. Todos perceberam a necessidade de o movimento ultrapassar os limites do provincianismo. A presença de figuras do cenário do Rio de Janeiro contribuiu para dar uma dimensão nacional ao evento. No entanto, a Semana assinalou um deslocamento cultural só tornado possível, de acordo com o crítico Antônio Cândido, porque “meia dúzia de intelectuais renovadores da Pauliceia, por estarem mais afastados do campo gravitacional do poder literário e artístico, teriam menos a perder”.

O deslocamento promoveu visões diferentes, confrontando leituras paulistas e não paulistas. A Semana, assim, passou a ser exaltada, combatida, negada, ao sabor de circunstâncias diversas, dificultando uma avaliação crítica mais acurada.

Por outro lado, algumas manifestações literárias com feições modernas, como a “escrita art déco”, estudada por Beatriz Resende, foram praticamente apagadas do cânone por um modernismo depurado de qualquer elemento que não correspondesse à visão do núcleo articulador da Semana.

A efeméride poderia ter passado à história como Semana Villa-Lobos. O espaço reservado à literatura, diminuto em relação à música, assumiu a forma de conferências: “A emoção estética na arte moderna”, de Graça Aranha, palestras de Menotti del Picchia, de Mário de Andrade e de Ronald de Carvalho.

A leitura de poemas, após a palestra de Menotti, já faz parte do nosso folclore literário. Assim que Oswald subiu ao palco, houve vaias e manifestações de desagrado. Tudo indica, no entanto, que os modernistas alugaram uma claque para encenar o escândalo: “Depoimentos de participantes do evento sugerem que o receio do fiasco os teria levado a incentivar alguns conhecidos a puxar a vaia no segundo dia”. Um golpe de mestre ou de marketing, fato já apontado por Mário da Silva Brito, no indispensável Antecedentes da Semana de Arte Moderna, primeiro volume da História do modernismo brasileiro, obra que infelizmente não teve continuidade.  

Livros, ensaios, reportagens, artigos, dissertações e teses ajudaram a construir uma visão multifacetada do marco inicial do modernismo. O livro de Marco Augusto Gonçalves serve para atenuar a visão acrítica sobre um mito da cultura oficial brasileira. A reconstituição passo a passo dos acontecimentos questiona verdades aceitas como incontestes, lacunas, deturpações. Torna-se uma referência importante para fugir a um evento reinventado constantemente ao longo do tempo pelos próprios participantes e por parcela significativa da crítica. A Semana de Arte Moderna é um mito móvel, informe, afetivo. Não pode ser apreendida apenas pela leitura de sua programação, pois tanto guarda organização quanto improviso, vale tanto pela presença quanto por ausências e esquecimento. Nela, no entanto, dificilmente encontramos as marcas de ruptura. Foi preciso um trabalho notável para reinventá-la como dias extraordinários de inovações estéticas e de propostas radicais.

Por ser uma manifestação flutuante, autêntico ponto de cruzamento de linhas de chegada e de partida, assumiu uma dimensão extraordinária, inscrita como nascente do pensamento e da sensibilidade que ainda nos regem. A leitura do livro ajuda a desmontar fantasias sobre os três dias mágicos e revolucionários de noventa anos atrás, apaga a lenda para nos restituir a história. Não obstante, a Semana nunca será aprisionada ao ano de 1922. Sempre viverá miticamente em fuga, o que só aumenta o desejo de querer inaugurá-los. Estranha semana, seus dias só transcorreram em anos posteriores.

 José Antônio Cavalcanti é poeta, professor do Colégio Pedro II e Doutor em Ciência da Literatura – UFRJ.