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Estudo a respeito da Vila Mimosa flagra a prostituição do lazer

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Hélio R. S. Silva*, Jornal do Brasil

RIO - É difícil pensar a prostituição sem cogitar sobre moralidade pública, sexualidade humana, família ou o papel social da mulher. Contornar tal dificuldade, no entanto, transformaria a resenha em um tratado.

É preciso encontrar formas sintéticas que permitam envolver na cena todas essas dimensões pelo recurso a flagrantes imaginados, como fez Nelson Rodrigues na peça teatral Perdoa-me por me traíres, ou observados como faz agora Soraya Silveira Simões em Vila Mimosa: etnografia da cidade cenográfica da prostituição carioca.

É claro que, entre um e outro, uma época caducou, outra época se insinua, deixando para nós a difícil tarefa de discernir o que permanece intacto entre as mudanças, o que há de realmente novo e o que só é aparentemente novo.

Só, por exemplo, os ditos ideais libertários de 1968 infligiram sérios golpes em diversas instituições. A pregação do amor livre, o discurso contra o machismo, a reivindicação da igualdade entre os gêneros encontravam na pílula anticoncepcional uma aliada eficaz. Tudo parecia concorrer para a obsolescência da instituição da prostituição.

O que o livro de Soraya Silveira Simões flagra, no entanto, passados 40 anos daquelas escaramuças, é a própria renovação da prostituição. Na Vila Mimosa, seus ... empresários cafetinas, donos de casa tornaram-se verdadeiros metteurs-en-scène de um drama cujos papéis, repertório de histórias tristes, script, desejos da clientela e elementos cênicos como decoração, iluminação, sonorização, dominam e agenciam para a composição dessa área moral .

Ali, a cena é composta pelo cultivo da memória. Evoca-se uma história com suas circunstâncias e seus personagens. Cria-se, portanto, uma tradição. As inovações, matéria por excelência do livro, entram em cena sintonizadas com tal passado como os novos estilos de atendimento ao cliente e a ideia de lazer associada ao negócio do sexo.

A própria memória torna-se um negócio. E, tendo a memória como fundamento, negocia-se a exploração turística do local. Parecem atentos ao merchandising propiciado pela curiosidade acadêmica que lhes confere visibilidade em livros, teses, dissertações e nos trabalhos escolares em geral.

Os gestores da Vila Mimosa parecem estar conscientes de que, ao lado das instâncias políticas, dos dispositivos legais e da cobertura da mídia, a chancela acadêmica concorre para o êxito de seus negócios e para a legitimação desse projeto. Diluem-se na nova cena a presença do pesquisador, a exterioridade da pesquisa acadêmica e o caráter invasivo do trabalho de campo. Parece haver ali espaços para o desenvolvimento deste trabalho e disposições que o acolhem.

Estas disposições crivam evidentemente tais espaços dos prováveis riscos do discurso pronto. E abrem as portas para a possibilidade, num regime de contraprestação, de ingerência na pesquisa e interferência na edição dos resultados. O primeiro risco é contornável pelo confronto do que se diz com o que se faz. Já o segundo é matéria aberta. As instituições de pesquisa defrontam-se e se defrontarão com o problema, particularmente em espaços sociais mais carentes de reconhecimento oficial e mais dependentes de recursos públicos.

Todo o problema consistirá, resumidamente, em equacionar o respeito aos universos observados com as exigências mínimas de um trabalho científico.

Esse corpo inteiro que parece constituir o cerne de toda boa etnografia é a própria matéria de Soraya, sempre presente na cena que observa. Evita assim a falsa objetividade das observações relatadas sem as condições de observação. Presente na cena, permite ao leitor controlar a matéria observada e perceber em cada observação a marca relativa de uma presença, que a condiciona.

A descrição de universos sociais deslocados ou distantes simbolicamente do leitor pode resultar em paisagens obscuras quando quem as descreve não incorpora ao quadro as condições nas quais as cenas foram observadas e os contatos mantidos. Isso implica em observar-se a si mesmo. Não pelo ideal narcísico, sintetizado pela expressão meninos, eu vi , que termina por fazer transbordar o observador na cena. Mas, apenas para qualificar a cena, que foi originalmente e intencionalmente arranjada para um observador. Para situar a resposta, produzida para um interlocutor específico, o entrevistador. Isso deve ser feito com a contenção observada no livro de Soraya.

A crítica aos quadros objetivos dos quais o observador se subtraía deu margem à proliferação de trabalhos onde o observador aparece em demasia. Esse transbordamento autoral é o simétrico inverso da supressão do observador.

Daí a importância da contenção. Pode-se falar em discrição, pois esta expressão sempre significou saber operar e se comportar de acordo com a circunstância e com uma precisa consciência do peso relativo de sua própria presença nela.

As relações entre um etnógrafo e seu campo serão sempre problemáticas. O campo é entrecortado por disputas internas, percepções diversas de seu próprio significado, formas particulares de lutar pelos seus interesses quando não se divide em torno da própria definição dos interesses principais.

Um etnógrafo, contudo, não é, não poderá vir a ser um representante dos segmentos que estuda. Seus compromissos éticos implicam em um respeito pelo campo que deverá estar explícito no texto que elabora e publica para prestar contas de seu trabalho. Isso não significa um colamento a eventuais e sempre transitórias avaliações que tal ou qual grupo termine por fazer de sua versão e das relações que pode ou deve manter com seu universo.

Redes e organizações várias se ocupam hoje da questão e a transformam em um problema político. Isso implica em disputas específicas pelo predomínio de certas avaliações e percepções do fenômeno e disputas internas ao campo pelo predomínio dessas visões e constituição de representantes do universo.

Um texto etnográfico não pode manter solidariedades incondicionais com tais ou quais grupos, assim como também não conseguirá estar acima das disputas e aspirar a uma neutralidade impossível. No entanto, como já disse alguém, a absoluta impossibilidade de alcançar a assepsia plena não autoriza ninguém a fazer uma cirurgia num esgoto.

Talvez o quadro apresentado não agrade a todos. Até porque poderia ser composto de mil maneiras. A maneira como terminou sendo composto por Soraya Silveira Simões atende às exigências éticas impostas ao antropólogo e às metodológicas prevalecentes no campo da antropologia social.

Os traços destacados pela autora chegam ao leitor pelas cenas vistas, pelas histórias ouvidas e por seus personagens. Episódios, relatos, histórias de vida dão corpo e concentram todas essas propriedades analiticamente isoladas. Por isso mesmo, o quadro composto neste livro é tão claro e vívido. Confere sentido ao apêndice escondido da Praça da Bandeira e o conecta a sua cidade.

* Antropólogo, autor de Travestis: entre o espelho e a rua (Rocco)