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Biografia tenta decifrar o verdadeiro enigma de Kafka

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José Antônio Cavalcanti*, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - Milan Kundera, em A arte do romance, contrapõe o trabalho dos romancistas ao dos biógrafos: enquanto aqueles desmontam suas próprias vidas para construírem seus romances, estes desfazem as obras dos romancistas para reconstruírem o que nelas se dissolveu. Dessa observação, o autor extrai uma condenação aos segundos: O trabalho deles não pode esclarecer nem o valor nem o sentido de um romance; apenas identificar alguns tijolos. No momento em que Kafka atrai mais atenção que Joseph K., o processo da morte póstuma de Kafka se iniciou .

O postulado de Kundera, no entanto, é incapaz de obstar a força irresistível que leva o leitor de Franz Kafka, premido pela inquietação deslumbrante de seus textos, a invadir a esfera privada do homem de carne e osso na nascente da obra. Invasão semelhante àquela que tenta se apropriar de sentidos emanados de seus escritos, vestindo-os de leituras históricas, místicas, pós-modernas, proféticas, psicanalíticas, sociológicas, teológicas. Felizmente Kafka é um autor que sempre nos escapa. Nem por isso a estranheza que causa deixa de provocar no leitor a sensação de vivenciar situações familiares, de atravessar um mundo ao qual ele, de modo misterioso, também pertence.

Em O mundo prodigioso que tenho na cabeça: Franz Kafka, Louis Begley resolve enfrentar a maldição de Kundera. Para essa tarefa o autor efetuou uma rigorosa pesquisa documental, valendo-se dos diários, da correspondência e da obra ficcional do romancista.

No capítulo A vida é meramente terrível , Begley retrata os anos iniciais de Kafka, nascido em 1813, e o ambiente judaico em que foi criado, inserindo-o em uma sociedade marcada por acentuado antissemitismo. A coabitação com a família foi um tormento para Kafka. O conflituoso convívio com o pai encontra sua intensidade textualizada em Carta ao pai .

Alto, esguio, elegante, vegetariano convicto, tímido e com vergonha do próprio corpo, Kafka também era adepto de práticas esportivas, apesar de uma constituição física muito frágil, fator agravante da tuberculose que abreviou a sua existência, levando-o à morte em 1924, aos 41 anos. Formou-se em direito e trabalhou no Instituto de Seguro contra Acidentes do Trabalho, experiências aproveitadas em sua ficção.

Na verdade, a maior preocupação de Kafka no início de sua vida adulta era descobrir uma ocupação respeitada e segura que lhe deixasse tempo suficiente para escrever e não fosse tão árdua que lhe drenasse a energia intelectual e psíquica , assim poderia praticar o que realmente lhe importava: Como nada sou além de literatura e não posso e não quero ser outra coisa além disso, meu emprego nunca se apossará de mim .

Begley registra a relutância ou a incapacidade de Kafka em correr riscos. Ressentia-se do provincianismo da atmosfera intelectual de Praga, contudo nunca teve energia para romper com o círculo judaico germanófono no qual circulava: embora escrevesse em alemão, não se descolava de Praga.Begley apresenta o autor vivendo num mundo fechado, num gueto exclusivamente judaico: Nenhum cristão jamais foi incluído, germanófono ou falante do tcheco .

Daí o aspecto inusitado de sua paixão por Milena Jesenská, de formação católica, com quem trocou correspondência e que dele nos deixou um retrato inesquecível: Ele via o mundo cheio de demônios invisíveis a dilacerar e destruir seres humanos indefesos. (...) Ele compreendia as pessoas como só alguém com uma imensa sensibilidade à flor da pele pode compreender, alguém que é solitário, alguém que pode reconhecer os outros num lampejo, quase como um profeta. Seu conhecimento do mundo era extraordinário e profundo; ele próprio era um mundo extraordinário e profundo .

Kafka apaixonava-se, era correspondido, demolia a própria paixão, subia e descia em uma gangorra sentimental, escrevia centenas de cartas, parecia que o amor ia acontecer, para tudo se desfazer no ar, inviabilizando qualquer possibilidade de união e permanência. O que dizer de alguém que conseguiu ficar noivo duas vezes da mesma mulher para abandoná-la? Qual o verdadeiro enigma de Kafka? Impotência, loucura, homossexualismo, impossibilidade de qualquer convivência, dedicação exclusiva à literatura, ascese?

Angústia amorosa

Das mulheres com quem se relacionou, apenas Felice Bauer e Milena Jensenská foram imortalizadas nas cartas de uma tensa e angustiada expressão amorosa. Pelo exame da correspondência, pode ser percebido o grau absurdo da intromissão de Kafka na vida de Felice: Deve anotar, por exemplo, a hora em que vai para o escritório, o que comeu no café da manhã, o que vê da janela de sua sala, que tipo de trabalho faz lá, os nomes de seus amigos e amigas, por que ganha presentes, quem tenta prejudicar sua saúde dando-lhe doces e as milhares de coisas de cuja existência e possibilidades eu nada sei .

Após apresentar o período final de Kafka, no quarto capítulo, Sou feito de literatura, não sou nada além disso , registrando o agravamento de seu estado físico, o autor esboça uma tímida interpretação na última parte do livro O machado para o mar congelado dentro de nós título extraído de uma bela passagem de Kafka: Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser banidos para florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós .

Ao apontar para a multiplicidade de leituras de O processo, Begley marca um ponto positivo ao criticar aqueles que veem no encontro no qual o noivado de Kafka e Felice foi rompido a culpa, a humilhação e o julgamento tematizados no romance, cuja frase inicial é uma das mais famosas da literatura do século 20: Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum .

Begley manifesta claramente sua preferência: O castelo é um romance mais rico do que O processo na amplitude da narrativa, no desenvolvimento de personagens secundários cativantes e inesquecíveis (Frieda, Olga, Amália, as duas albergueiras da aldeia, Pepi e Bürgel, entre outros) e nas descrições da aldeia sem nome coberta de neve e dos interiores de estalagens e cabanas de camponeses que fazem lembrar as pinturas de Peter Bruegel. Se Kafka houvesse conseguido concluí-lo ou pelo menos levá-lo até mais próximo do término, O castelo seria o auge de sua criação .

Walter Benjamin, citado por Begley, parece antecipar as afirmações de Kundera: Kafka possuía uma capacidade rara de criar parábolas para si mesmo. No entanto, suas parábolas nunca se esgotam pelo que é explicável: ao contrário, ele tomou todas as precauções concebíveis contra a interpretação de seus escritos . Isso não anula o trabalho de Begley, mas nos faz voltar correndo para os textos de Kafka, seduzidos pela esfinge que neles nos acena e provoca.

*José Antônio Cavalcanti é doutorando em ciência da literatura pela UFRJ.